
Auto referenciação à guisa de introdução: — O
aparecimento de um novo autor de cordel é motivo de festa e reflexão.
Festa porque mais um se vê tocado pela seta cavilosa cordelial. Reflexão
para discernir entre o "aventureiro", aquele que não
tem compromisso com a arte; o "aproveitador", aquele que pega carona no
poderio lúdico cordelístico para nutrir seu próprio egoísmo; o
"experimentador", poeta que quer beber na fonte cordeliana e nela se
banhar para sentir sua textura, profundidade e temperatura; o
"pranteador filantrópico", que chora o fim do cordel e diz que quer
ajudar a manter a arte viva; o "ignorante condenado ao inferno", aquele
que pensa que conhece a arte, imagina que detém a força poética, zomba
dos outros poetas e aproveita qualquer brecha para aparecer e tentar
ganhar uns trocados com seus folhetos malacabados; e, por fim, o
"escolhido", aquele que vem cumprir a sina, vestir-se de paladino, lutar
a luta mais vã, sonhar e realizar. É o que fica. Todos nós que lidamos
com o cordel nos deparamos com uns e com outros, sempre.
Há
algum tempo fiz uma observação e a complementei com algumas
interrogações: — O romance sumiu do cordel. O cordel de gracejo, o
cordel pedagógico, o cordel das adaptações estão tomando o lugar das
pelejas, dos romances, das aventuras originais. Os cordéis sobre seu
Lunga, sobre o peido, sobre a bunda, sobre o chifre, etc. são
best-sellers. Mas e os romances? Quem tem fôlego para o cordel original?
Motivos não faltam. Faltarão poetas? — Atento a esse questionamento,
Felipe Júnior, aproveitando minha passagem pelo Recife, durante a Bienal
do Livro, aparteou-me e disse-me: — Tu não querias um romance? Olhaí? —
E que belo texto encontrei, porque Felipe narra, descreve e reflete a
vida sem perder a poesia, utilizando-a como ferramente para engrandecer
sua obra. O Romance de Maria e Ezequiel ou O Grande Golpe do Destino
cumpre todos os quesitos do romance cordelístico, aliás, o destino tem
sido, desde a fundação, o tema base dos romances. Felipe, com maestria
de quem não é novato (vide a breve introdução no início do post) divide o
seu relato exatamente como o fizeram os pais do cordel brasileiro: na
primeira estrofe faz a proposição, apresentando uma tese a ser defendida
durante a narração; nas próximas 9 estrofes apresenta os personagens
(Antonio Justino e sua mulher Helena, o coronel João Arraes e os
protagonistas Ezequiel e Maria Luiza); por volta da estrofe 10 nos
oferece a chave para todo o desenrolar da ação:
Antonio e Helena viram
Que pra ter felicidade
A menina precisava
De pai e mãe de verdade
E, portanto, a entregaram
Ao coronel da cidade.
A partir daí, o sofrimento dos pais que não podiam criar uma criança
por falta total de condições econômicas e sociais é esmiuçado para que
os pobres leitores deixemos nascer dentro de nós os pactos ficcionais
que nos fazem simpatizar com uns personagens e antipatizar com outros. O
narrador de Felipe é um intrometido que sabe tudo o que vai pelo
coração dos personagens, prevê os seus atos, lê seus pensamentos e
oferece uma leitura própria do mundo. Assim, de vez em quando, ele
interrompe a narrativa para nos dar uma reflexão:
O grande golpe da vida
É necessário esquecer,
Pois por mais que ele nos fira
Ou que nos faça sofrer
Temos que buscar na vida
Um motivo pra viver.
De novo:
Entretanto quando o homem
Já se sente muito esperto,
A vida vem e coloca
Seu destino como incerto
Deixando um grande buraco
No seu coração aberto.
E novamente:
A vida nos mostra fatos
Que quer vê pede clemência,
Mas quando temos razão
E se agirmos com prudência
Pra ter um bom resultado
Baste termos persistência.
Esses três momentos reflexivos do narrador são as marcas para anunciar a
mudança de ação e erguer novos cenários. A primeira, marca o
preenchimento da lacuna da perda da filha com o anúncio do nascimento de
Ezequiel; a segunda, corta para o fato que transformará a vida de todos
os personagens e o aparecimento de outros personagens coadjuvantes: o
casamento de uma linda donzela que tocará o coração de Ezequiel; e a
terceira, nos traz o clímax da narrativa (que deixarei em aberto para
que você, meu nobre leitor, contacte o autor e peça um exemplar do
romance).
Felipe Júnior é um professor de Filosofia, mas em sua
base é um poeta repleto de virtudes e atuações. Lá no Recife é figura
presente na cena cultural. Com esse romance, trilha o caminho da Geração
Princesa, dialoga com a Geração Prometida e consolida-se meio à Geração
Coroada do Cordel Brasileiro, esta que perfaz a contemporaneidade
cordelística. Felipe é um escolhido.
Obrigado, poeta, por repercutir esse meu breve texto sobre o retorno do romance ao cordel com nosso querido Felipe Júnior no protagonismo poético. Abraço!
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