-"Manda chamar São Pedro ai menino", avisa um senhor
robusto de
passo vagaroso e sorriso tímido ao anjo que o recebe
na portaria do céu.
E o anjo, tomado pela surpresa do pedido,
emenda sem muita convicção.
-"São Pedro essa hora está
dormindo!"
E
o homem de gestos lentos e voz baixa, com sua sanfona
do lado não perde
tempo: -"Eu sabia. Só pode estar dormindo o
santo, com tanta seca no
Sertão!"
-"Pois me diga uma coisa, meu filho, onde é que fica aqui o
pessoal do forró, do baião, do xote, do xaxado, do pé de serra?
E o anjo já irritado já com tanta perguntação, dispara:
-"O senhor pegue sua sanfona e entre tocando do mesmo
jeito que
fez a vida toda e eles vão reconhecer na hora pois pra
tocar como o
senhor, aqui nunca chegou ninguém."
E assim, querendo agradar, Seu Domingos aprumou sua
velha companheira e emendou sua cantiga mais linda:
Estou de volta pro meu aconchego
Trazendo na mala bastante saudade
Querendo um sorriso sincero, um abraço,
Para aliviar meu cansaço,
E toda essa minha vontade.
Que bom, poder tá contigo de novo,
Roçando o teu corpo e beijando você,
Prá mim, tu és a estrela mais linda
Seus olhos me prendem, fascinam,
A paz que eu gosto de ter.
É duro, ficar sem você vez em quando.
Parece que falta um pedaço de mim.
Me alegro na hora de regressar,
Parece que eu vou mergulhar,
Na felicidade sem fim...
Seus olhos brilhavam, a medida que os amigos de tantos
anos iam aparecendo.
Veio Jackson com um pandeiro na mão acompanhando a
toada. Deu um abraço e disse: - “Tamo junto. Hoje o côro vai
comer"
Veio Patativa do Assaré com um maço de papel rabiscado
e
emendou: - "Não vinha simbora não homem? Olha o tanto de
letra pra você
botar musica."
Veio Marinês com uma chinelinha rasteira e não perdeu
tempo:
-"Até que enfim, Neném! Pensei que tú não vinha mais.
Termine logo essa
ladainha que eu quero matar a saudade de
tocar um xote contigo".
Addias na sua sanfona de oito baixos rasgava solos de
arrepiar
as penas dos anjos que se aproximavam pra ver aquela
"confusão" que se
formava na entrada do céu.
Um
sujeito de uma brancura que doía nos zóio puxou
também seu fole que
logo Dominguinhos reconheceu. Com uma
deferência sanfonada, abraçou o
velho amigo: - "Se achegue,
mestre Sivuca. Eu lhe disse que a gente
ainda se encontrava".
E
assim, tantos outros grandes mestres da musica popular
nordestina.
Tantos amigos, tantos companheiros desses longos
anos de estrada.
O forró começou e era uma música atrás da outra. -"Eita
forró bom como o diabo.", gritou Dominguinhos.
Pra quê? Os amigos quase que em coro advertiram:
-"Hôme se
ajeite no linguajar que você tá no céu. Aqui não se
fala no coisa
ruim".
Dominguinhos deu aquela sua risada macia que lhe é
característica. -"Oxe, e é mesmo né? Pois tá combinado."
Com
meia hora de forró, Dominguinhos olhava pra um lado
e pro outro como
que procurasse alguém que ainda não tinha
dado as caras naquela
animação. Todos já sabiam de quem se
tratava mas como já estava tudo
combinado, faziam de tudo pra
aumentar ainda mais o suspense. A esta
altura, já faziam parte
da plateia em deleite, um milhão de anjos e
querubins, Santa
Luzia, São Pedro (ainda com uma cara de sono bem
dormido) e
São João que não podia faltar depois de tantos anos vendo o
velho sanfoneiro tocar em suas festas. Até o Todo Poderoso
mandou seu
filho na frente pra avisar que esperassem ele chegar
pra presenciar o
grande encontro. Apesar de toda sua
onipresença, esse encontro ele fazia
questão de ver com os
próprios olhos.
Foi
então que, chegando de mansinho por trás, o velho
amigo pousa a mão no
ombro do sanfoneiro de Garanhuns, que
numa alegria que não se via há
anos, puxava os versos animados
de:
Olha! Que isso aqui tá muito bom
Isso aqui tá bom demais
Olha! Quem tá fora quer entrar
Mas quem tá
dentro não sai...
Dominguinhos não precisou nem virar. Reconheceu o amigo
pelo
cheiro. Aquele cheiro. Aquele cheiro bom. Aquele cheiro lá
das bandas do
Exú.
E nesse instante, o céu se alumiou ainda mais e se cumpriu a
Prece a Luiz escrita por Dominguinhos anos atrás e cantada
agora entre
um longo abraço e lagrimas de saudade e alegria
pelo reencontro.
Prece a Luiz
Por Dominguinhos
Se Deus me desse outra vida
Além dessa que vivo
Iria viver de novo pertinho de seu Luiz
E aprender outra vez, os segredos da sanfona
O canto de amor a terra e esse apego ao chão
Se Deus me desse outra vida
Gastava ela na estrada
Varando noites a fio
Fazendo o povo dançar
Só queria teus abraços pra descansar da sanfona
Depois de nela tocar, o mais bonito baião
Pois Asa Branca, na vida triste do povo
Para o nordeste alegrar trazendo amor e paixão
Légua tirana deixa distante do povo
Seca martírio e miséria trás alegria ao sertão
Faço uma prece ao Luiz
Peço pra me iluminar
Que eu não esqueça a raiz do rumo do meu cantar
E as lágrimas que caiam dos olhos de Dominguinhos, do
Gonzagão e de todos aqueles que ai estavam carregaram as
nuvens do céu e
depois de tantos dias, choveu no Sertão do
Brasil.