quarta-feira, 27 de maio de 2020

Morte de padre Henrique, uma história que não pode ser esquecida, completa 51 anos

maio 27, 2020 Por Alexandre Morais Sem comentários

  Antônio Henrique Pereira da Silva Neto tinha apenas 28 anos de idade quando foi sequestrado, torturado e assassinado na cidade do Recife em 27 de maio de 1969. Jovem, poliglota e ordenado padre havia três anos e cinco meses, ele era auxiliar do então arcebispo dom Helder Camara (1909-1999) na Arquidiocese de Olinda e Recife. A morte do padre Henrique completa 51 anos este mês e por 45 anos foi tratada como crime comum pela polícia. Só em 2014, a Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Camara conseguiu provar que o crime teve motivação política, com o envolvimento de agentes do Estado e civis integrantes da extrema direita pernambucana, como consta em relatório elaborado e divulgado pela equipe que participou do trabalho.

Os documentos reunidos pela Comissão da Verdade, que derrubam a tese do crime comum, como atestou a polícia à época, foram digitalizados pela Companhia Editora de Pernambuco e estão disponíveis para leitura no Acervo Cepe (www.acervocepe.com.br), gratuitamente, há cinco anos. No portal há duas seções exclusivas sobre a morte do padre Henrique. Uma delas traz o relatório oficial do assassinato, produzido pela Comissão da Verdade, com 117 imagens, que também contém relatório da Comissão Judiciária de Inquérito criada pelo governo do Estado para apurar o crime, transcrição de escutas telefônicas e documentos confidenciais do Serviço Nacional de Informações (SNI).
A segunda seção preserva o prontuário do padre Henrique, composto de recortes de jornais, correspondências, panfletos, relatórios, declarações, entre outros. “Temos 12 tipos de documentos e aproximadamente 300 imagens no prontuário”, informa o superintendente de Digitalização, Gestão e Guarda de Documentos da Cepe, Igor Burgos. Também estão disponíveis nessas seções fotografias do religioso e registros da missa de corpo presente e do cortejo que acompanhou o caixão da Igreja do Espinheiro (Zona Norte) ao Cemitério da Várzea (Zona Oeste), com a participação de padres e estudantes.
“Um ano depois do crime, em junho de 1970, o SNI concluiu o que de fato tinha acontecido, que havia um delegado de polícia, dois  investigadores e um carro da Secretaria de Segurança Pública envolvidos na morte do padre”, destaca o presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife, Antônio Carlos Maranhão de Aguiar. O relatório com essa informação, diz ele, foi enviado ao Ministério da Justiça, com um alerta para o escândalo que seria provocado no Brasil e no mundo caso a verdade fosse divulgada. “Difamaram padre Henrique, difamaram dom Helder e botaram uma pedra em cima do assunto. Tudo isso foi descoberto pela Comissão da Verdade. Tudo isso está no relatório à disposição do público. É uma verdade documental, não é opinião”, sublinha.
O trabalho da Comissão da Verdade, acrescenta Antônio Carlos Maranhão, esclareceu para o mundo os acontecimentos que levaram ao sequestro e assassinato do sacerdote num regime de exceção. “Depois de 45 anos, descobriu-se que os agentes que se apresentavam à sociedade como defensores da democracia ocidental e cristã, defensores da igreja tradicional e contra a infiltração comunista na igreja eram canalhas e bandidos. Daí a  importância de manter acesa essa história, para mostrar aos jovens o que se faz por baixo de um tapete bonito. Não se sepulta uma história como essa, ela serve para prevenir e não deixar que um messias retorne dizendo-se salvador da Pátria, com ideias geralmente genocidas, geralmente assassinas, geralmente perversas”, afirma.
Para Antônio Carlos Maranhão, a escolha do sacerdote, que também atuava como professor em duas escolas particulares (Vera Cruz para meninas e Marista para meninos) e no Colégio Municipal do Recife não foi aleatória. “Padre Henrique não era um padre qualquer. Logo após ser ordenado por dom Helder Camara, ele assumiu a Pastoral da Juventude da Arquidiocese, tinha estudado nos Estados Unidos, era poliglota com experiência internacional e, como professor, tinha acesso privilegiado a jovens de classe média e alta do Recife”, observa. “Em 1968, quando foi baixado o mais sanguinário dos atos institucionais, o AI-5, padre Henrique era considerado um subversivo porque fazia com os jovens um trabalho de esclarecimento e evangelização seguindo aquilo que dom Helder pregava: um mundo onde a paz fosse fruto da justiça. Pode ser até que alguns pais mais conservadores tenham se sentido incomodados com ação dele. O fato é que ele passou a ser perseguido com a pecha de comunista e foi sequestrado quando saía de uma das reuniões com pais e alunos. São essas coisas que estão começando a voltar, hoje, como um pesadelo”, alerta.
Criada em 2012, a Comissão Estadual da Verdade ficou em atividade até meados de 2019. A investigação do Caso Padre Henrique, um dos primeiros com relatoria concluída, demorou um ano e meio. “É um trabalho relevante para a história de Pernambuco, Estado que sempre se destacou com uma participação política muito proativa no cenário nacional e um dos que mais resistiu à ditadura militar que se instalou após o golpe de 1964”, declara o jurista Henrique Mariano. Secretário-geral da Comissão da Verdade Dom Helder Camara e relator do Caso Padre Henrique, ele disse que o objetivo desse trabalho era fazer um esclarecimento histórico, sem perseguições e sem julgamento.
“A história verdadeira e completa do assassinato do padre Henrique, um jovem que desenvolvia um trabalho de inclusão social com toxicômanos, não tinha sido contada ainda”, diz Henrique Mariano, ao destacar a importância do resgate feito pela Comissão. “O inquérito policial concluiu que era um crime comum, sem vinculação ao regime político vigente na época e trouxemos provas documentais de que se trata de um crime eminentemente político, a despeito de o padre não ter participação política partidária”, relata. “Matar o padre era atingir dom Helder e o clero pernambucano, a Comissão da Verdade conta a história como ela aconteceu e deixa esse legado para as gerações futuras. Hoje, mais do que nunca, quando até jovens pedem a volta de uma intervenção militar, é preciso tocar nesse assunto. O AI-5 foi o maior golpe dado na República Federativa do Brasil, com demissão de professores, prisão de funcionários, retirada de estudantes de universidades. Quem defende a volta desse regime ignora a história”, alerta o jurista.
Padre Henrique, sacerdote que marcou sua trajetória na igreja pelo trabalho de acompanhamento da juventude no Recife, faria 80 anos em outubro de 2020. “Ele dedicou a vida ao trabalho com os jovens, não era tão comprometido com questões políticas e por isso o assassinato chocou a todos. Aquilo que aconteceu era para ferir dom Helder”, reforça o arcebispo de Olinda e Recife, dom Fernando Saburido. “Eu não era próximo do padre Henrique, mas tem um episódio que nunca esqueço: a primeira vez que recebi a hóstia na mão, quando o Concílio Vaticano II liberou essa forma de comungar, ela foi entregue por padre Henrique”, recorda o arcebispo. O restos mortais do sacerdote foram transferidos do Cemitério da Várzea para a Igreja da Sé, em Olinda.
Há, no Acervo Cepe, cerca de 270 mil documentos da Comissão Estadual da Verdade, informa Igor Burgos. “Iniciamos a digitalização em agosto de 2013 e inauguramos  o espaço no portal em outubro de 2014. Ao todo, são 18 seções que têm documentos administrativos, atas de reuniões, relatórios e prontuários de Miguel Arraes (1916-2005),  dom Helder Camara e padre Henrique. A Comissão foi criada para tornar público e esclarecer violações praticadas pela ditadura em Pernambuco”, afirma Igor Burgos.

Texto: Cleide Alves/Assessoria de Imprensa Cepe
Fotos: Comissão Estadual da Verdade/Acervo Cepe

maio 27, 2020 Por Alexsandro Acioly Sem comentários
Foto: Alexsandro Acioly


SERTANIDADE


Lição de Sertanidade. É com essa simples descrição que inicio esse texto sobre a bela obra do caboclo sonhador Maciel Melo; o neguinho de Heleno, como ele mesmo se intitula no seu livro, A Poeira e a Estrada.
Com um linguajar fácil e de boa compreensão, Maciel nos faz viajar no tempo e nas coisas do nosso sertão. Para quarentões, como eu, basta fechar os olhos depois de cada estrofe lida que a viagem no tempo é certa e garantida, através de cada palavra, ou frase, escrita por ele.
O neguinho de Heleno relembra a sua infância na roça, nas olarias raspando tijolos, nas brincadeiras de moleque e até o rugido das rodas dos carros de boi reavivam a sua memória, como também a de nós, leitores, que, de uma forma ou de outra, vivenciamos isso.
Maciel Melo dá uma lição de sertanidade a alguns matutos que não conhecem a fundo, ou não querem reconhecer, a natureza, a cultura, a religiosidade e tantos outros aspectos e costumes do nosso torrão.
Ler esta obra foi como debulhar um rosário, e sair correndo entre mistérios e Ave Marias procurando a minha identidade. Através dessa procura é que encontro cada doido que lembro na minha infância – São Anas, Zefas, Zabés, Mijões, Quincas, Pei Peis, e tantos outros que, às vezes, a memória nos trai. É, através dessa leitura, que também encontro bodegas – como a de seu João Santana e Enoque. Reencontro barbeiros, engraxates, vendedores de meio de feira, o homem da Cobra e várias outras figuras que compartilhavam suas vidas com as nossas.
E a primeira bicicleta, como esquecer? Eu, como nunca tive a primeira, não tenho como lembrar; mas, o neguinho de Heleno me levou à primeira televisão, que foi repassada pela minha avó materna. Era uma televisão, se não me falhe a memória, da marca TELEFUNKEN, preto e branca, sem falar que era de velas e demorava um bocado de tempo para aparecer a imagem – enquanto a gente de casa e a vizinhança, aguardávamos sentados no chão para assistir à novela e ao jornal. Dias depois, painho comprou uma tela, daquelas vendidas na feira, que eram colocadas em frente à tela da tv para a imagem ficar colorida... aí sim a coisa começou a ficar melhor.
Figuras ilustres, hoje esquecidas por alguns, nos são lembradas. Como seu conterrâneo Diógenes de Arruda Câmara, nascido lá no Riacho do Mel, distrito de Iguaraci, que teve uma grandiosa importância política e estudantil na Bahia para a construção do Brasil. Não é à toa que Diógenes é homenageado em uma das obras de Jorge Amado, intitulada “Os subterrâneos da Liberdade” – obra que ainda não li, mas irei ler em breve.
O neguinho de Heleno não é uma Regina Duarte, que cita o circo como talvez uma das suas influências para o despertar da vida artística. O neguinho, não. Ele realmente viveu o circo nos “Tempos de Menino” e, até hoje, carrega na boleia do destino esse aprendizado de infância.
Por fim, Maciel Melo deixa, nas últimas páginas do seu livro, um glossário de palavras usadas no cotidiano do povo sertanejo que serve de guia para nós leitores.
Pois bem, com orelhas abrindo as cancelas para a obra assinada pelo poeta e escritor Jessier Quirino, e prefácio do escritor e redator Paulo Rocha, abrimos os olhos para a leitura e, no final, os fechamos para viajarmos de carona nas histórias do ‘cabôco’ sonhador, do neguinho de Heleno, do pajeuzeiro de Iguaraci: Maciel Melo.

(Alexsandro Acioly)


quarta-feira, 6 de maio de 2020

O Brasil está matando o Brasil

maio 06, 2020 Por Alexandre Morais Sem comentários

Foto: Arquivo pessoal / Aldir Blanc

Por Gustavo Conde

   O Brasil vai se despedindo aos poucos. Mataram a democracia, a bandeira, o hino, os símbolos nacionais e, agora, com o auxílio inestimável do coronavírus, vão eliminando o povo. Não é preciso dizer quem é o sujeito dessas ações. Você sabe, eu sei, todos sabem.
   Quando Aldir Blanc foi pego pelo coronavírus e precisou da solidariedade de amigos para ser internado em uma UTI, eu tive medo. ‘Aldir, não’, pensava eu na solidão cidadã que se alastrou por este território outrora denominado país.
   Aldir, o maior letrista brasileiro - o gentílico se aplica a ele com singela delicadeza -, dono de mais de 500 canções em parcerias com os maiores melodistas desta terra, vivia uma vida franciscana para a monumentalidade de direitos autorais a que teria direito. O autor de “O Bêbado e a Equilibrista” não tinha plano de saúde.
   Foi através do apelo de sua filha Isabel que uma rede de amigos se uniu para prestar solidariedade - em meio ao caos sanitário que massacra o Brasil -, agilizando a transferência do compositor para uma UTI.
   Foi um dos gestos mais bonitos de carinho que já testemunhei. Ali, pôde-se ver um Brasil que ainda não acabou completamente - e o quanto Aldir Blanc e a família Blanc são amados por quem sabe reconhecer a luta pela democracia, pela arte e pela liberdade.
   O drama da família Blanc é o drama de todos nós brasileiros, órfãos de país, órfãos de democracia, órfãos de memória. A esposa de Aldir, Mari, está internada com o coronavírus neste momento. Não haverá despedidas.
   Qual dor pode ser maior do que essa?
   Eu respondo: a dor de passar por esta catástrofe sanitária - revestida de desumano isolamento afetivo - e ainda ser massacrado todos os dias por um genocida que mata, debocha, provoca e mente.
   Quem ama a arte, a democracia e a vida humana está, neste momento, despedaçado pelo volume colossal de horrores promovido pelo Estado brasileiro.
   Aos poucos, o Brasil - aquele Brasil que um dia foi imaginado e experimentado por todos nós - vai nos deixando em definitivo, sob a perplexidade de uma sociedade que aparentemente desaprendeu a reagir.
   Eu choro a morte de Aldir Blanc com toda a dor institucional que dilacera meu coração. Para mim, não morre apenas um dos maiores compositores da história deste Brasil em extinção, mas um ser humano adorável, pai, marido e amigo querido daqueles que tiveram o privilégio de cruzar o seu caminho.
   O Brasil não merece o Brasil. O Brasil está matando o Brasil.
   A morte de Aldir não é apenas a morte de Aldir: é um aviso para que saiamos desse imobilismo chocante e confrontemos aqueles que nos matam todos os dias, através do ódio e da política da vingança.
   Esse Brasil que vai se despedindo não irá mais voltar. Moraes Moreira, Rubem Fonseca, Aldir Blanc vão levando consigo parte das nossas identidades. A responsabilidade, agora, é construir um outro Brasil, igualmente forte, pujante e pleno de cultura e ousadia - mas inexoravelmente novo e distinto.
   Este Brasil que se despede sequer é mencionado por este governo que nos assaltou e tenta nos arrancar o futuro todos os dias. Ele ignoram e detestam o Brasil democrático que superou a ditadura sangrenta com as músicas de Aldir Blanc. É uma sensação terrível de desterro, abandono e violência.
   A morte de Aldir nos arremessa nessa realidade dramática que se confunde com a imensa dor pela perda de sua vida.
   Ouçamos a obra de Aldir. Leiamos suas crônicas. Saudemos seu legado como o registro do melhor Brasil de todos os tempos, o Brasil que esmagou militares golpistas com arte e esperança equilibrista.
  E que transformemos seu legado em energia política e artística para virar esse jogo mais uma vez. Ele iria gostar disso.

Postado originalmente em: www.gustavoconde.blogspot.com, em 04/05/2020