segunda-feira, 28 de maio de 2018

A Porca e o Parafuso

maio 28, 2018 Por Alexsandro Acioly Sem comentários
Foto: Divulgação
         O desespero de um parafuso querendo se soltar de uma porca azucrinava o silêncio da boleia, impedindo-o de ouvir uma de suas canções prediletas: “Eu conheço cada palmo desse chão, é só me mostrar qual é a direção. Nunca misturei mulher com parafuso...” Pois bem, andou quilômetros e quilômetros, mas o chão esburacado afrouxava não só os parafusos, mas o juízo também. Sem acostamento, sem sinalização, sem seta, ia aumentando o seu repertório de palavrões a cada “catabiu”. Mais adiante, uma placa aviza: Cuidado! Buracos na pista. 
   O sol escaldante chega tremer no mormaço que refuga no refluxo da terra quente. (Êpa! Já estou mudando de assunto). Era necessário um espaço onde pudesse estacionar para ver em qual lugar da carroceria aquele parafuso estava sendo torturado. A arruela, que nada tinha a ver com a ferrugem que carcomia a rosca e remoía o polígono que deslizava na chave sem conseguir girar a cabeça, levava a culpa pela zoada que não lhe pertencia. 
   O parafuso não tinha mais fenda, o alicate de pressão escapulia dos ângulos, machucando o vértice que tentava unir dois lados incongruentes, atraídos apenas pelo efeito do aço, onde se formavam imãs com magnetismos opostos. A corrosão eliminou as cavidades que se entrelaçavam, vedando os espaços entre a rosca do parafuso e a porca.
   Um pouco de compreensão para com seu velho amigo de estrada se fazia necessária, afinal. Quantas idas e vindas, quantos caminhos tortos, quantos por de sol, quantos sóis-nascentes viram juntos por entre os montes, acendendo os anseios e avermelhando a certeza de continuar caminhando atrás de um sonho só: cantar, cantar, cantar e levar a música dos ventos estrada afora. Relatando isso, percebo que, às vezes, me consumo, assumo, viro sumo, e sumo na poeira das estradas. 
   Pronto, alforriou o parafuso, segue sua viagem, ouvindo a sinfonia que emana das vegetações, e sai assobiando as canções zumbi-gregorianas dos matos, acelerando os tambores hermético-vasconcelianos que retumbam nos cânions de sua imaginação. 
   A estrada é um longa-metragem de um filme que só acaba quando o protagonista resolve quebrar a barra da direção, se jogando ou esbarrando em alguma fatalidade. 
   “Armaria, armaria, armaria; três vezes”. 
   Que essa viagem não se acabe nunca.
(Maciel Melo)

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