segunda-feira, 28 de maio de 2018

O Divino e o Humano

maio 28, 2018 Por Alexandre Morais Sem comentários
   O Poeta Dedé Monteiro, aí acima retratado por Jan Ribeiro (Secult PE) na solenidade na qual recebeu o reconhecimento oficial como Patrimônio Vivo de Pernambuco (2016), é uma das revelações divinas na terra. Em carne, espírito e poesia é Divino. Isto, claro, para os que assim dirigem a uma força maior a explicação para as coisas não explicáveis humanamente.
   Mas também é humano. Genialmente humano. Uma destas revelações é este extraordinário trabalho:

O batente de pau do casarão

Quando foi construída há muito mais
De cem anos a casa da fazenda
Seu batente foi feito de encomenda
Por alguém que morreu oitenta atrás
Sob o peso cruel dos dois portais
Humilhado de bruços sob o chão
Ele lembra quem sabe um seu irmão
Que no mato ficou sem ser cortado
Lamentando o destino desgraçado
Do batente de pau do casarão


Era rija, quinada e resistente
Essa peça de pau que existe ainda
Mas o tempo, dragão que tudo finda
Foi aos poucos deixando diferente
Hoje, um velho pisando esse batente
Sentirá a maior recordação
Pois em tempos que longes já se vão
Ele forte pisara essa madeira
E hoje fraco se pisa é na caveira
Do batente de pau do casarão


Nessa casa, durante o casamento
Do primeiro casal que morou nela
O batente levou mais pisadela
Do que Cristo durante o seu tormento
Até tarde durou seu sofrimento
Recebendo e soltando a multidão
Que entrava e saía no salão
Trinta vezes, quarenta por minuto
Sem querer maltratando o corpo bruto
Do batente de pau do casarão


Nessa noite, depois que todo mundo
Foi embora deixando os dois a sós
Eles dois do amor ouvindo a voz
Se beijaram de um modo tão profundo
Que a esposa depois respirou fundo
E lhe disse "querido, agora não
Eu depois lhe darei meu coração
Mas queria aguardar esse depois
Vendo a lua sorrindo pra nós dois
Do batente de pau do casarão"


Quantas vezes ouviu em sua vida
As batidas da porta que sustenta
Ora calma, mas ora violenta
Dependendo da força da batida
Mais de sua metade foi comida
Pelos pés da passada geração
Nunca mais a alma humana pôs a mão
Onde os pés provocaram tantos danos
Danos esses que falam sobre os anos
Do batente de pau do casarão


Sobre a sua carcaça a gente lê
Sua vida, seus feitos, sua história
Desde o tempo feliz de sua glória
Aos destroços que agora a gente vê
Onde estão os seus donos e por que
O deixaram nas mãos da solidão
Os seus restos mortais já não nos dão
A firmeza do tempo em que era vivo
Resta agora somente o negativo
Do batente de pau do casarão


Quantas vezes seu dono não botou
Entre as oito da noite, nove ou dez
Uma cuia com água entre seus pés
E sentado em seu dorso se banhou
Quantas vez alguém não o pisou
E gritou "ô, de casa, meu patrão"
E no mesmo momento um cidadão
Respondendo "ô, de fora", a porta abria
Só então a visita se descia
Do batente de pau do casarão


Sua face rugosa, rota e fraca
Guarda ainda mil marcas do passado
Provocadas por gumes de machado
Roçadeira, serrote, foice e faca
Mesmo assim, sua vida tão opaca
Vale muito para mim, sou seu irmão
Sendo escravo da mesma escravidão
Sou batente também de carne e osso
Pois carrego mais peso no pescoço
Que um batente de pau de um  casarão

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