Os documentos reunidos pela Comissão da Verdade, que derrubam a tese do crime comum, como atestou a polícia à época, foram digitalizados pela Companhia Editora de Pernambuco e estão disponíveis para leitura no Acervo Cepe (www.acervocepe.com.br), gratuitamente, há cinco anos. No portal há duas seções exclusivas sobre a morte do padre Henrique. Uma delas traz o relatório oficial do assassinato, produzido pela Comissão da Verdade, com 117 imagens, que também contém relatório da Comissão Judiciária de Inquérito criada pelo governo do Estado para apurar o crime, transcrição de escutas telefônicas e documentos confidenciais do Serviço Nacional de Informações (SNI).
A segunda seção preserva o prontuário do padre Henrique, composto de recortes de jornais, correspondências, panfletos, relatórios, declarações, entre outros. “Temos 12 tipos de documentos e aproximadamente 300 imagens no prontuário”, informa o superintendente de Digitalização, Gestão e Guarda de Documentos da Cepe, Igor Burgos. Também estão disponíveis nessas seções fotografias do religioso e registros da missa de corpo presente e do cortejo que acompanhou o caixão da Igreja do Espinheiro (Zona Norte) ao Cemitério da Várzea (Zona Oeste), com a participação de padres e estudantes.
“Um ano depois do crime, em junho de 1970, o SNI concluiu o que de fato tinha acontecido, que havia um delegado de polícia, dois investigadores e um carro da Secretaria de Segurança Pública envolvidos na morte do padre”, destaca o presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife, Antônio Carlos Maranhão de Aguiar. O relatório com essa informação, diz ele, foi enviado ao Ministério da Justiça, com um alerta para o escândalo que seria provocado no Brasil e no mundo caso a verdade fosse divulgada. “Difamaram padre Henrique, difamaram dom Helder e botaram uma pedra em cima do assunto. Tudo isso foi descoberto pela Comissão da Verdade. Tudo isso está no relatório à disposição do público. É uma verdade documental, não é opinião”, sublinha.
O trabalho da Comissão da Verdade, acrescenta Antônio Carlos Maranhão, esclareceu para o mundo os acontecimentos que levaram ao sequestro e assassinato do sacerdote num regime de exceção. “Depois de 45 anos, descobriu-se que os agentes que se apresentavam à sociedade como defensores da democracia ocidental e cristã, defensores da igreja tradicional e contra a infiltração comunista na igreja eram canalhas e bandidos. Daí a importância de manter acesa essa história, para mostrar aos jovens o que se faz por baixo de um tapete bonito. Não se sepulta uma história como essa, ela serve para prevenir e não deixar que um messias retorne dizendo-se salvador da Pátria, com ideias geralmente genocidas, geralmente assassinas, geralmente perversas”, afirma.
Para Antônio Carlos Maranhão, a escolha do sacerdote, que também atuava como professor em duas escolas particulares (Vera Cruz para meninas e Marista para meninos) e no Colégio Municipal do Recife não foi aleatória. “Padre Henrique não era um padre qualquer. Logo após ser ordenado por dom Helder Camara, ele assumiu a Pastoral da Juventude da Arquidiocese, tinha estudado nos Estados Unidos, era poliglota com experiência internacional e, como professor, tinha acesso privilegiado a jovens de classe média e alta do Recife”, observa. “Em 1968, quando foi baixado o mais sanguinário dos atos institucionais, o AI-5, padre Henrique era considerado um subversivo porque fazia com os jovens um trabalho de esclarecimento e evangelização seguindo aquilo que dom Helder pregava: um mundo onde a paz fosse fruto da justiça. Pode ser até que alguns pais mais conservadores tenham se sentido incomodados com ação dele. O fato é que ele passou a ser perseguido com a pecha de comunista e foi sequestrado quando saía de uma das reuniões com pais e alunos. São essas coisas que estão começando a voltar, hoje, como um pesadelo”, alerta.
Criada em 2012, a Comissão Estadual da Verdade ficou em atividade até meados de 2019. A investigação do Caso Padre Henrique, um dos primeiros com relatoria concluída, demorou um ano e meio. “É um trabalho relevante para a história de Pernambuco, Estado que sempre se destacou com uma participação política muito proativa no cenário nacional e um dos que mais resistiu à ditadura militar que se instalou após o golpe de 1964”, declara o jurista Henrique Mariano. Secretário-geral da Comissão da Verdade Dom Helder Camara e relator do Caso Padre Henrique, ele disse que o objetivo desse trabalho era fazer um esclarecimento histórico, sem perseguições e sem julgamento.
“A história verdadeira e completa do assassinato do padre Henrique, um jovem que desenvolvia um trabalho de inclusão social com toxicômanos, não tinha sido contada ainda”, diz Henrique Mariano, ao destacar a importância do resgate feito pela Comissão. “O inquérito policial concluiu que era um crime comum, sem vinculação ao regime político vigente na época e trouxemos provas documentais de que se trata de um crime eminentemente político, a despeito de o padre não ter participação política partidária”, relata. “Matar o padre era atingir dom Helder e o clero pernambucano, a Comissão da Verdade conta a história como ela aconteceu e deixa esse legado para as gerações futuras. Hoje, mais do que nunca, quando até jovens pedem a volta de uma intervenção militar, é preciso tocar nesse assunto. O AI-5 foi o maior golpe dado na República Federativa do Brasil, com demissão de professores, prisão de funcionários, retirada de estudantes de universidades. Quem defende a volta desse regime ignora a história”, alerta o jurista.
Padre Henrique, sacerdote que marcou sua trajetória na igreja pelo trabalho de acompanhamento da juventude no Recife, faria 80 anos em outubro de 2020. “Ele dedicou a vida ao trabalho com os jovens, não era tão comprometido com questões políticas e por isso o assassinato chocou a todos. Aquilo que aconteceu era para ferir dom Helder”, reforça o arcebispo de Olinda e Recife, dom Fernando Saburido. “Eu não era próximo do padre Henrique, mas tem um episódio que nunca esqueço: a primeira vez que recebi a hóstia na mão, quando o Concílio Vaticano II liberou essa forma de comungar, ela foi entregue por padre Henrique”, recorda o arcebispo. O restos mortais do sacerdote foram transferidos do Cemitério da Várzea para a Igreja da Sé, em Olinda.
Há, no Acervo Cepe, cerca de 270 mil documentos da Comissão Estadual da Verdade, informa Igor Burgos. “Iniciamos a digitalização em agosto de 2013 e inauguramos o espaço no portal em outubro de 2014. Ao todo, são 18 seções que têm documentos administrativos, atas de reuniões, relatórios e prontuários de Miguel Arraes (1916-2005), dom Helder Camara e padre Henrique. A Comissão foi criada para tornar público e esclarecer violações praticadas pela ditadura em Pernambuco”, afirma Igor Burgos.
Texto: Cleide Alves/Assessoria de Imprensa Cepe
Fotos: Comissão Estadual da Verdade/Acervo Cepe
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