Por Gustavo Conde
O Brasil vai se despedindo aos poucos. Mataram a democracia,
a bandeira, o hino, os símbolos nacionais e, agora, com o auxílio inestimável
do coronavírus, vão eliminando o povo. Não é preciso dizer quem é o sujeito
dessas ações. Você sabe, eu sei, todos sabem.
Quando Aldir Blanc foi pego pelo coronavírus e precisou da
solidariedade de amigos para ser internado em uma UTI, eu tive medo. ‘Aldir,
não’, pensava eu na solidão cidadã que se alastrou por este território outrora
denominado país.
Aldir, o maior letrista brasileiro - o gentílico se aplica a
ele com singela delicadeza -, dono de mais de 500 canções em parcerias com os
maiores melodistas desta terra, vivia uma vida franciscana para a
monumentalidade de direitos autorais a que teria direito. O autor de “O Bêbado
e a Equilibrista” não tinha plano de saúde.
Foi através do apelo de sua filha Isabel que uma rede de
amigos se uniu para prestar solidariedade - em meio ao caos sanitário que
massacra o Brasil -, agilizando a transferência do compositor para uma UTI.
Foi um dos gestos mais bonitos de carinho que já
testemunhei. Ali, pôde-se ver um Brasil que ainda não acabou completamente - e
o quanto Aldir Blanc e a família Blanc são amados por quem sabe reconhecer a
luta pela democracia, pela arte e pela liberdade.
O drama da família Blanc é o drama de todos nós brasileiros,
órfãos de país, órfãos de democracia, órfãos de memória. A esposa de Aldir,
Mari, está internada com o coronavírus neste momento. Não haverá despedidas.
Qual dor pode ser maior do que essa?
Eu respondo: a dor de passar por esta catástrofe sanitária -
revestida de desumano isolamento afetivo - e ainda ser massacrado todos os dias
por um genocida que mata, debocha, provoca e mente.
Quem ama a arte, a democracia e a vida humana está, neste
momento, despedaçado pelo volume colossal de horrores promovido pelo Estado
brasileiro.
Aos poucos, o Brasil - aquele Brasil que um dia foi
imaginado e experimentado por todos nós - vai nos deixando em definitivo, sob a
perplexidade de uma sociedade que aparentemente desaprendeu a reagir.
Eu choro a morte de Aldir Blanc com toda a dor institucional
que dilacera meu coração. Para mim, não morre apenas um dos maiores
compositores da história deste Brasil em extinção, mas um ser humano adorável,
pai, marido e amigo querido daqueles que tiveram o privilégio de cruzar o seu
caminho.
O Brasil não merece o Brasil. O Brasil está matando o
Brasil.
A morte de Aldir não é apenas a morte de Aldir: é um aviso
para que saiamos desse imobilismo chocante e confrontemos aqueles que nos matam
todos os dias, através do ódio e da política da vingança.
Esse Brasil que vai se despedindo não irá mais voltar.
Moraes Moreira, Rubem Fonseca, Aldir Blanc vão levando consigo parte das nossas
identidades. A responsabilidade, agora, é construir um outro Brasil, igualmente
forte, pujante e pleno de cultura e ousadia - mas inexoravelmente novo e
distinto.
Este Brasil que se despede sequer é mencionado por este
governo que nos assaltou e tenta nos arrancar o futuro todos os dias. Ele
ignoram e detestam o Brasil democrático que superou a ditadura sangrenta com as
músicas de Aldir Blanc. É uma sensação terrível de desterro, abandono e
violência.
A morte de Aldir nos arremessa nessa realidade dramática que
se confunde com a imensa dor pela perda de sua vida.
Ouçamos a obra de Aldir. Leiamos suas crônicas. Saudemos seu
legado como o registro do melhor Brasil de todos os tempos, o Brasil que
esmagou militares golpistas com arte e esperança equilibrista.
E que transformemos seu legado em energia política e
artística para virar esse jogo mais uma vez. Ele iria gostar disso.
Postado originalmente em: www.gustavoconde.blogspot.com, em 04/05/2020
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