Foto: Claudio Gomes |
A marca do piano
A porta da frente entreaberta, ladeada por duas janelas pintadas de azul já descascando a tinta, mostra a ausência humana num cenário de silêncio e solidão. As cicatrizes do tempo desenhavam as paredes, e o abandono se esparramava no oco daquela imensidão. A linha mestra da cumeeira já dava sinais de cansaço, pois os cupins haviam por fim vencido a batalha. O mofo predominando o ambiente, o verde do lodo acentuando o roda-teto e a saudade pendurada numa teia de aranha que se escondia embaixo do banco de um velho piano.
O deserto estava ali reinando naquele enorme casarão. Escuto o ranger das ripas e dos caibros que, de teimosos, ainda resistem. No quintal um tronco, fincado bem no centro de um círculo de rastros calcificados, exala um cheiro arrepiante de revolta de senzala, algo parecido com cheiro de enxofre. Percebe-se que ali no passado, foi palco de muito sofrimento e dor. Dava pra sentir o estalo do chicote no açoite do vento. No alto, na fachada da casa, um brasão de nobreza bem talhado, provavelmente por algum escravo caprichoso, estampava em três letras à quem pertencia aquela propriedade.
Os redemoinhos fazem festa no terreiro e o vento assobia uma melodia triste, que ecoa no vazio dessa casa, que pela marca do piano, nota-se que alguma alegria já habitou aquele recinto. Tirei fotos, passeei em seu interior, rondei por todos os cômodos e não apareceu uma viva alma sequer, além de mim. O velho piano empoeirado, ainda ostentava marcas de copo sobre a parte superior do espelho do teclado, como se alguém tivesse dedilhado uma canção de despedida. Quem sabe “La vie en rose”, talvez “Hora do adeus”, ou outra moda antiga que descreva uma saudade. Um enorme calafrio me toma o corpo e a alma, mas a curiosidade era tanta, e quis aproveitar o máximo; era como se eu protagonizasse Orfeu na obra de Vinicius de Moraes. Durante quase uma hora perambulei por ali, pasmo, enfurnado numa sensação estranha. Vinham à mente pedaços de textos de Joaquim Nabuco, misturados com trechos de poemas de Castro Alves, sombreados pela escuridão poética de Augusto dos Anjos. Mas eis que de repente, surgem passos vindos na direção da porta de entrada. Era um senhor alto, magro, olhos profundos, sobrancelhas grisalhas e um chapéu de palha. Puxava de uma perna e se apoiava numa bengala feita de um galho de marmeleiro.
— Olá!
— Olá, meu senhor!
— Quem é você? perguntou, meio ríspido.
— Boa tarde, senhor. Desculpe a invasão, mas o passado é um assunto que me interessa. Outro dia estava lendo um livro intitulado “Espelho dos girassóis”, de um poeta pernambucano chamado Maviael Melo; meu irmão de sangue, de cor e de luz; e em um dos prefácios me deparo com isso aqui: “O passado é uma casa que carregamos nas costas enquanto avançamos em direção ao futuro”. (Bráulio Tavares). Só podia ser ele né?
Pois bem meu senhor, não resisti ao ver esse casarão abandonado e cheio de cicatrizes em seu redor; quis sentir e saber um pouco de sua história.
— Ah, bom! Pensei que fosse algum herdeiro, ou algum tipo desses que gostam de invadir e se apropriar do alheio. Olhe, moço, abandonaram isso aqui há muito tempo. Restou esse piano aí, nunca entendi por que não o levaram. Venho sempre aqui, pois meu pai foi um dos escravos dessa casa.
— Quantos anos o senhor tem?
— Oitenta e oito. Vi e vivi muitos momentos aqui. Nessa sala, presenciei muitas noites de glamour, assim como senti na pele as chibatadas dadas nas costas de alguns irmãos de cor. Mas, um dia, o feitiço virou contra o feiticeiro e a desgraça tomou posse dessas terras, até expulsar a todos de forma drástica. No último episódio, três irmãos se esfaquearam até a morte, bem no meio desse terreiro, e eu vi tudo, era muita fúria, muito sangue, muita desgraça. A matriarca morreu de desgosto, o barão enlouqueceu, e o último morador saiu certa manhã e dele nunca mais se teve notícias. Fico mais um pouco escutando aquela saga narrada por aquele senhor, que já não tinha mais brilho no olhar, nem esperanças na face. Em um determinado momento, ele disse: — É, moço, Meu prazo de validade está se findando. Fui libertado, mas continuo preso pelos espíritos dos meus ancestrais.
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