terça-feira, 23 de março de 2021

Maciel Melo - Crônicas de um cantador

março 23, 2021 Por Alexandre Morais Sem comentários

  


   Utopia

  Perguntaram-me outro dia onde eu morava; respondi: Eu moro num país que inventei pra mim, e quem a mim vier. Lá não tem misoginia, homofobia, diferença de cor, não tem violência, não tem armas, nem fome, nem hipocrisia; não tem deficientes cívicos, nem miséria. Eu moro no país onde as crianças apontam lápis, e não armas. Eu moro no país onde a juventude vai às ruas lutar pela cidadania de seu povo; pela democracia, pela liberdade de expressão, pelo direito de pensar, e discutir o destino da nação sem as pessoas deixarem de gostar umas das outras, por pensarem diferentes. Eu moro no país onde a paz é o estado maior; onde o povo é quem governa, o parlamento é formado por professores, o judiciário é imparcial; o congresso é feito pelos trabalhadores, e o palácio é a casa de cada um. Eu moro no país dos humildes, dos honestos, dos poetas e dos bem-feitores.

Eu moro no país que imagino, e fantasio na esperança que ele venha a se tornar realidade. O governo tem que vir do povo, ser do povo, com o povo e para o povo.
O país onde eu moro não está na gulodice dos meliantes de gravatas que se esbaldam no sarcasmo de suas prepotências. Não está na arrogância dos patrões escravocratas, que continuam discriminando e agindo‭ ‬como se não tivesse havido a‭ ‬abolição. Não está nas lápides geladas da tortura, no descaso, nas agruras, e na cegueira de quem não quer enxergar que tudo está ruindo.
O país que eu moro está onde o verde louro de sua flâmula aflora o fruto posto à mesa, e a fauna engorda nos pastos sobre a terra dividida. Está no direito de ir e vir, está nos versos de Joaquim Osório Duque Estrada; está em‭ “O Guarani”‬, de Antônio Carlos Gomes, nos folhetos de cordel, na sanfona de Luiz Gonzaga, nas violas encantadas dos menestréis, dos cantadores violeiros. Está no sabor do extrato do grão do café torrado no caco e coado de manhã cedinho, alimentando os filhos pretos, de mães pretas, de pais pretos, para irem à labuta do dia a dia. O país que eu moro está na cabeça de Paulo Freire, no Auto da Compadecida, está entre Deus e o Diabo na Terra do Sol, está nos livros de Guimarães Rosa, nos grandes sertões e nas orações de Dom Hélder Câmara. O país que eu moro está na correnteza dos rios, nos versos de Patativa do Assaré, e não na ira das enxadas. O país que eu moro, não está no agora, talvez esteja no futuro, mas pra isso é preciso passar uma borracha naquela página triste manchada de sangue que ficou lá no passado, e traçarmos um caminho novo, sem apagar a sua verdadeira história.
Às vezes, penso que somos inquilinos em nossa própria pátria. Às vezes, penso que somos apenas vultos vagando pelos guetos da periferia desse gigante chamado Brasil. Às vezes, penso que somos invisíveis aos olhos daqueles que não querem enxergar que o país está se esfacelando, e que, se a gente não se bulir, vão engatilhar o passado e disparar na gente as espoletas que mataram, encarceraram, torturaram e levaram para o túmulo grandes cérebros da nossa historia. Vejo se esfarelarem as sobras de esperanças desse povo sofrido, bravo e esquecido, que só é lembrado na hora de depositar numa urna os créditos de uma vida inteira e, depois, ver a confiança que depositou ali, ser comercializada por alguns em benefício próprio. Esses são perigosos; é fácil distingui-los: eles miram o dedo em nossa cara, e amoitados disparam na calada da noite, enquanto a cidade dorme (e não é tiro de misericórdia, muito menos de festim) e só acertam o alvo porque a sociedade está estática. Se até as pedras se movem, porque ficarmos parados?
Mas o povo é como flor: quanto mais esmagam suas pétalas, mais o cheiro de sua essência exala.
O país que eu moro é um sonho, é profundo demais, é utopia. Sem sangue nas calçadas, sem ladrões, sem covardia, sem corruptos, sem prisão, sem anarquia, sem retirantes, sem exclusões, todos iguais. Um país que amo, clamo, reclamo, e me derramo sobre o pano de sua bandeira sem perder a esperança, jamais.
Um país de pretos puro-sangue, mulatos, índios, pardos, cafuzos, mestiços, o país de Mãe Preta e Pai João. De irmã Dulce, “Pade Cíço” e Damião; de Mãe Menininha, de Conselheiro, Chico Mendes, Jackson do Pandeiro e Lampião. Esse país pelo qual tanto andei, e ainda ando. Nadei em seus rios, subi suas serras, devorei estradas, criei calos, andei léguas além. Desmanchei conceitos, rompi barreiras, atravessei desertos, sonhei multidão. Abri cancelas, engoli poeira, revirei montanhas, carreguei pedras, e abanei meu mormaço com um leque, feito das folhas de uma velha bananeira, que teimava em existir no baixio das minha ilusões.

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