Um dia cheio de nuvens
Por trás das lentes de um Rayban espelhado, de coloração azul, vejo a imagem de dois seios pontiagudos, talhados pela natureza em duas rochas, numa das mais belas ilhas de um arquipélago no Nordeste do Brasil.
A brisa do mar, o sereno da noite e uma rede no avarandado de uma modesta pousada: apenas quatro quartos, zelosamente bem distribuídos, na empatia de um fotógrafo que tornou-se ilhéu, me deu guarida e me tratou a pão de ló.
O café da manhã ao gosto do hóspede, que maravilha!
O rangido da rede, o assovio dos ventos e a ressonância da respiração de uma ilhéia se misturam ao som das espumas que se desmancham na areia da praia, como se o mar cuspisse as impurezas humanas, expelidas pelo turismo e pelas embarcações que urinam óleo diesel em suas águas.
O orvalho nas folhas, o sereno lá fora, e eu piso leve para não acordar seu sono. Saio de mansinho, e bem devagar destranco a porta, como um ladrão saindo depois de roubar um beijo da mulher amada.
Deixo entreaberta a porta e vou até a praia.
Molho meus pés, fico a deriva, pouso meus olhos no oceano e peço a benção à Iemanjá. O dia amanhece, o sol me encandeia, o corpo vadeia, a lua se encanta. O mar se levanta, sacode, se agita, balança, palpita, cresce, se agiganta.
O Bar do Cachorro, a Praia do Bode, a Baía dos Porcos, a Praia da Conceição, a Cacimba do Padre, a Praia do Meio, a Baía de Sancho, a Praia do Leão. O beijo da noite, o desejo da carne, a beleza da tarde, o Morro dos Dois Irmãos.
E assim eu viajo para além do mar. Navego distante em velas abertas, se a rota é incerta deixo o vento levar. Pois estou ali, num pedacinho de céu, um vitral, espelhos de lâminas d’água, que Deus fez pra se olhar, para todo fim de tarde pentear os fios dos raios do sol, lavar o sorriso de sua grandeza e retocar a maquiagem do rosto da imensidão.
Ah! “Como é grande e suprema a natureza”.
Uma sereia, de óculos coloridos, caminha entre os lajedos. Me conta segredos, me faz companhia, me filma, me ajeita, me faz sossegar. Eu dou um mergulho, me molho, me banho, me benzo me ganho, como é lindo este lugar.
Eu era apenas um seixo de pedra rolando no infinito do azul daquele mar. Era uma isca de carne, pendurada num anzol invisível, enganchado em uma vara de bambu, esperando a hora de ser fisgado por uma emoção qualquer.
Éramos dois, éramos cem, éramos mil, uma multidão de signos cheios de ascendentes numa tempestade de ventos.
Enlouqueci o zodíaco, misturei os astros e explodi o cosmos. O universo era uma bola incandescente suspensa no oco do meu imaginário. Aquelas ilhas preenchiam o vácuo da solidão de um poeta louco, que não acredita que o mundo é uma bola, mas que guarda ainda hoje a imagem de Pelé, nos álbuns de suas figurinhas.
Parece que foi ontem, parece que foi hoje, parece que foi nesse instante. Mas é hora do vôo da volta. A cabeça cheia de paz, a mochila cheia de sonhos, os dias findando o ano, e eu sem querer sair do passado. O futuro me assusta, vejo à minha frente uma selva de pedra, cal, cimento, fumaça, sangue e fedor. Esgotos a céu aberto, entulhos despejados pela burguesia sobre os arredores da cidade, servindo de morada para os urubus.
Vô-te! Vou de volta pro passado, lá não sou capacho do rei, lá ainda tem poesia, lá ainda se dá bom-dia, boa-tarde, boa-noite. Lá ainda sinto o açoite do vento do meio-dia.
Eita! Que vontade de desmanchar a mala, rearmar a rede, mergulhar na praia do Sueste e mandar um recado para o continente: Deixem de serem imbecis, vão amar a vida!
Mas já estou na sala de espera e os comissários de bordo anunciam: “Atenção senhores passageiros, em instantes daremos início ao embarque”. Fila 1, as prioridades; fila 2, acentos de 15 em diante; fila 3, acentos de 1 a 14. Verifico o meu lugar e me dirijo à fila 2. Fim da viagem.
Retorno ao marco zero. Tudo volta a ser normal, mas como é chata a normalidade da vida! Sem mãos atrevidas, sem adrenalina, sem medo, sem perigo, sem rochedo, sem a poesia dos irreverentes.
Era uma vez um dia cheio de nuvens.
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