sábado, 22 de maio de 2021

Maciel Melo - Crônicas de um Cantador

maio 22, 2021 Por Alexandre Morais Sem comentários

Vila de São Jorge Dos Ilhéus

Os orixás regem a retreta que toca uma marcha-rancho em homenagem a Jorge Amado (foto), um dos cidadãos mais ilustres do único estado brasileiro que abriga um pedaço do coração da África bem no seio de sua gente.
Os pináculos da Catedral de São Sebastião, em riste, servem de mirante para que todos os santos abençoem a baianíssima Vila de São Jorge dos Ilhéus, a Princesinha do Sul, cenário de um dos mais brilhantes clássicos da literatura brasileira – Gabriela, cravo e canela.
Ilhéus foi a cidade escolhida por Jorge Amado para ser o berço de suas criaturas. Dorival Caymmi, seu eterno amigo, companheiro e camarada, era quem embalava o berço para acalentar cada personagem que nascia.
A pujança do cacau, a capoeira, a chula, a negritude, o fervor e a malemolência baiana alimentavam o teor das narrações do mais célebre escritor brasileiro. Viva Jorge Amado, viva a Bahia de Todos os Santos, de Glauber Rocha, do Bem-Amado, dos Bem-Aventurados, do vatapá, do caruru, do dendê, e do Senhor do Bom Fim. Bahia onde o sol brilha irradiando cada recanto desta Ilhéus de bela vista, com seu mar azul e sua extensa praia de espumas brancas que mais parecem o rendado das saias das baianas quando se arrumam para nos oferecerem seus acarajés.
Na praia do Cristo, o remanso acalma a alma de qualquer um que por lá chegue em desassossego. Lá não existe tempestade, só mansidão. Ilhéus, município tão belo, imortalizado por Jorge, amado por todos nós. Ilhéus que deu asilo ao árabe Nacib, acolheu Gabriela, criou Tonico, apadrinhou Maria Machadão e lhe deu um alvará de funcionamento para que ela abrisse o cabaré mais luxuoso da cidade, o Bataclan. Ilhéus, terra do Coronel Ramiro Bastos, dos Capitães de Areia, do Jubiabá e de Dona Flor, com seus dois maridos. Terra do cacau, do algodão, do milho e da soja. O que mais me acende a memória é o período do apogeu do cacau, talvez pela cor achocolatada da pele de suas mulatas.
Os desenhos em alto-relevo de sua arquitetura barroca embelezam a fachada de seus casarões e me remetem ao período colonial. Período em que a escravidão ainda era bastante presente, não esqueçamos.
Ainda guardo na lembrança a imagem do Porto do Malhado, onde, numa tarde cinzenta do mês de maio do ano de mil novecentos e oitenta e cinco, o céu nublado, o mar bravio e o vento forte prenunciavam uma grande trovoada. Dito e feito: em alguns minutos, uma chuva de granizo cobria o porto e me tangia para o Vesúvio, o antigo Bar do Nacib, eternizado no romance de Gabriela. E para minha felicidade, encontrei uma moça bela que me fez companhia até o último minuto dos três dias em que me arranchei por lá.
Fui na fonte do pai do Quincas Berro D’água, bebi água, matei minha sede e mergulhei numa lagoa encantada. Nadei no Rio Almada, me banhei na nascente de um riacho e me transbordei nas páginas de seus livros, encharcando de vivência, sabedoria e fé, a cabeça de um poeta sonhador, que se transportava para uma época em que proibir era a palavra de ordem. Época em que Glauber Rocha duelava entre Deus e o Diabo na Terra do Sol. Caetano e Gil gritavam “É proibido proibir” num megafone, em cima de um objeto não identificado, enquanto Jorge Amado armava sua Tenda dos Milagres para Pedro Arcanjo espalhar sua sapiência em defesa da raça negra, nadando contra a corrente em meio a uma procela, em um país que sangrava e minava pelos quatro cantos a revolta daqueles que pensassem além dos muros dos quartéis. Época em que o medo ecoava na calada da noite e os esturros da repressão vazavam pelas brechas dos portões da ditadura militar. A cavalaria marchava sobre os paralelepípedos das ruas, dos becos e das avenidas, caçando e prendendo estudantes, poetas, professores, pensadores ou qualquer um que fosse divergente do regime que se instalava no país.
Enfim, eu estava na Bahia não só pela beleza natural daquele lugar e daquele povo, mas também para pedir a bênção: a bênção, São Jorge Amado; a bênção, Mãe Menininha do Gantois; a bênção, Irmã Dulce, João Gilberto e Dorival. A bênção, Castro Alves, Rui Barbosa, João Ubaldo e Elomar. A bênção, todos os que povoaram esta crônica em homenagem a este que foi, é e sempre será lembrado como o pai da morena mais inebriante da literatura brasileira: Gabriela.

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