O Brasil tem uma dívida imensa para com a música e a memória de João Gilberto, que faria 90 anos neste 10 de junho
João
Gilberto, se estivesse vivo, completaria 90 anos na quinta-feira, 10 de
junho.
O inventor da Bossa Nova morreu
aos 88 anos, em 2019.
A música popular brasileira deve
muito a ele.
Nós, meros ouvintes, também.
O Brasil tem uma dívida imensa
para com a sua música e a sua memória.
Um
pouco do que penso dele:
João Gilberto (em incrível
caricatura de William Medeiros) ouviu Orlando Silva, os sambistas do Rio de
Janeiro e os sambas de Dorival Caymmi. Ouviu também Chet Baker, estrela do cool
jazz, artista de canto intimista que, para os americanos, está longe de ser tão
importante quanto João é para nós, brasileiros. No início, muito antes da Bossa
Nova, sua voz era como a dos cantores antigos, dizem os que o ouviram.
Em 1958, na gravação de Chega de Saudade, registro inaugural da bossa,
está transformada: já tem a contenção que adotaria dali por diante, junto à
originalíssima batida do violão. E tem o diálogo entre os dois elementos. Voz e
violão, em avanços e recuos que embutiam uma revolução. A música brasileira
depois de João atesta. O mundo todo reconhece.
Há um intervalo entre o período em que João integrava um grupo vocal de samba e o instante em que participa, em duas faixas, do disco Canção do Amor Demais, de Elizeth Cardoso. Naquele intervalo, inventou a batida da bossa e adotou um jeito de cantar diferente de tudo o que se fazia no Brasil.
Com Elizeth, acompanha a
intérprete, ao violão, em Chega de
Saudade e Outra Vez.
Mas falta a voz. E o casamento dela com o instrumento. É o que ouvimos, pouco
depois, no 78 rpm que traz Chega de
Saudade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, arranjada por Tom.
A voz e o violão de João, elementos indissociáveis. Uma gravação de dois
minutos. Um corte: o antes e o depois daquele disco.
Chico Buarque, Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Edu Lobo, Milton Nascimento, Roberto Carlos. Todos (e muitos
outros) dirão onde estavam quando ouviram Chega de
Saudade pela primeira vez. E falarão sobre o efeito
devastador que aquela gravação teve na vida e na música deles.
A essência da invenção de João
Gilberto está nos três discos que gravou na velha Odeon entre o final da década
de 1950 e o início da de 1960. A releitura dos sambas anteriores à bossa, um
pouco de Dorival Caymmi, algo de Ary Barroso e muito dos seus contemporâneos,
sobretudo Antônio Carlos Jobim – é o que se ouve naqueles LPs, que não estão
oficialmente disponíveis em CD por causa da briga judicial que, durante anos, o
artista teve com a gravadora.
Ao
LP Chega de Saudade, seguiram-se mais dois discos: O Amor, o Sorriso e a Flor, de 1960, e João Gilberto, de 1961. Os três me parecem
suficientes como tradução do que foi a Bossa Nova. Seminais, formam um conjunto
de excepcional beleza e grande unidade.
São tão indissociáveis quanto a
fusão da voz de João Gilberto com a batida do seu violão.
Violonista de formação erudita,
Turíbio Santos conta que uma vez tentou tocar como João Gilberto, pensando que
era fácil. Não conseguiu. A batida que João criou é a síntese do samba e a sua
reinvenção. A utilização dos baixos desaparece para dar lugar a uma mão direita
que percute o ritmo, enquanto a esquerda oferece acordes dissonantes num
refinado desenho harmônico.
A execução ilude o ouvinte e até o
músico: ela parece simples, mas é muito complexa. A voz nem sempre se deixa
guiar pelo instrumento que a acompanha. Ora está adiantada, ora atrasada, às
vezes os dois se encontram. É misterioso, preciso, perfeito. É necessário
entender este diálogo para que não se incorra no erro de diminuir o artista.
Os três primeiros discos na Odeon,
o encontro com o saxofonista Stan Getz (em Getz/Gilberto),
o LP de capa branca, que começa com uma versão inigualável de Águas de Março, e Amoroso são
os melhores registros da sua arte sofisticada, retratos de um país com que
sonhamos e não do Brasil que temos.
Há muitos anos, numa conversa com Caetano Veloso, pedi que falasse de Tom Jobim e João Gilberto. Ele disse que a invenção deste deflagrou uma possibilidade que o talento daquele estivera até ali esperando e que o resultado faz da gente um povo com muitas responsabilidades. Pena que tantos ainda não compreendam o som e o silêncio produzidos por João Gilberto.
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