sábado, 24 de julho de 2021

Ronaldo Correia de Brito - A invenção do Sertão

julho 24, 2021 Por Alexandre Morais Sem comentários

Foto: Claudio Gomes

   “O que é o tempo? Se não me perguntam, eu sei; se me perguntam, desconheço.” A frase de Santo Agostinho que me chegou através do escritor argentino Jorge Luis Borges, mais parece um aforismo de Guimarães Rosa: O que é o sertão? Se não me perguntam, eu sei; se me perguntam desconheço. Segundo o dicionário Houaiss, o sertão é uma região agreste, afastada dos núcleos urbanos e das terras cultivadas, em especial a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do gado, e onde permanecem tradições e costumes antigos. Para Câmara Cascudo o sertão é o interior, como o definiram os cronistas Fernão Mendes Pinto, o Padre Antonio Vieira e o escrivão Pero Vaz de Caminha.

   O sertão dos bandeirantes paulistas situava-se na Serra do Mar ou além dela, em florestas atlânticas, onde eles grilavam índios, procuravam ouro, pedras preciosas, e caçavam animais de peles comerciáveis. Capistrano de Abreu lamentava que a história brasileira tivesse ficado apenas no litoral, não adentrasse os interiores, os sertões. Os primeiros mapas desenham um Brasil costeiro. Só mais tarde, com os avanços da colonização e o trabalho dos exploradores, seguindo os cursos dos rios chega-se ao Brasil profundo, misterioso como o oceanos que os navegadores temiam singrar.

   Os ingleses traduzem sertão como backlands, terras de trás. Olhando o mar e o litoral, tudo o que está às costas seria sertão. Esse primeiro significado valia para as terras gerais do Brasil. A palavra sertão ainda não fora reinventada pelos escritores, poetas, pintores e cineastas. Ainda não ganhara os limites geográficos que hoje a situa em zonas mais áridas, sobretudo nordestinas. Cascudo escreveu que “o nome fixou-se no Nordeste e no Norte, muito mais do que no Sul. O interior do Rio Grande do Sul não é sertão, mas poder-se-ia dizer que sertão era o interior de Goiás e de Mato Grosso.” Na sua literatura, Guimarães Rosa o situa nos gerais de Minas, embora afirme que o sertão está em toda parte.

   Há algo que sentimos como sendo o sertão. Talvez ele nos transmita um apelo, o mesmo que Rudyard Kipling ouviu em relação ao Oriente. – “Se ouvires o apelo do Oriente, já não ouvirás outra coisa.” Se ouvires as vozes sertanejas, já não escutarás outras vozes. Nem enxergarás outras perspectivas, como um nordestino a quem subiram num prédio alto de São Paulo e pediram que dissesse o que avistava: o Crato, respondeu. O sertão habita em nós, mesmo quando já não o habitamos. O sertão é como Deus definido por Hermes Trimegisto, uma circunferência cujo centro está em todas as partes e a periferia em nenhuma. O sertão é a essência, o miolo, o cerne. É marca de ferro que nos queima e não se desfaz. O sertão é o silêncio das pedras, as ausências. O sertão não existe, é pura invenção dos poetas.   

   O sertão é anterior ao descobrimento. Ele já se fundara em Creta, na Grécia Antiga, o berço da civilização ocidental, no culto ao touro, na arte de domar a rês. E em Israel com o seu legado da Escritura Sagrada. O Oriente e o Ocidente se juntaram no sertão, sedimentaram os costumes depurados na Península Ibérica, através da presença moura e judaica.

   Mas é através dos artistas que o sertão se reinventa. Cada um deles cria o próprio ferro de marca, o sertão pessoal que vira patrimônio de todos. José de Alencar e a etnologia do sertanejo. Euclides da Cunha e o sertão da Guerra de Canudos. Guimarães Rosa e o sertão de todas as veredas. Ariano Suassuna e o sertão armorial da Pedra do Reino. Graciliano Ramos e as vidas secas num sertão realista. Raquel de Queiroz e o sertão da estiagem de 1915. Jorge Amado e as cores das desigualdades sociais. Glauber Rocha solta Deus e o Diabo na terra do sol.

Foto:Claudio Gomes
   O cinema do ciclo do cangaço fixa os estereótipos de um regionalismo que a televisão irá explorar de forma grosseira e vulgar. Surgem caricaturas de trajes e falas, os coronéis, as sinhás, os vaqueiros que não são cowboys. Retratam a miséria, os mandacarus e chique-chiques, os despotismos, a sanha dos cangaceiros. O sertão por essas lentes é um mundo sem épica, de tragédias sem sentido trágico. Não possui a dignidade de um faroeste americano de John Ford, John Huston ou Roberto Leone.

  À margem desse poderoso mundo da comunicação, os poetas, violeiros, cordelistas, aboiadores, contadores de história, xilogravadores, ferreiros, artesãos do couro, bordadeiras, romeiros, brincantes dos autos populares e muitos outros artistas do mundo sertanejo de meu Deus continuaram produzindo uma arte que se liga à tradição universal, que realiza o milagre de reunir o que se criou no Oriente e no Ocidente.

  No sertão, origens e tempos se misturam. O aboio, que chama para o curral o gado de semente indiana, lembra o canto de um muezim muçulmano. O sertanejo habita uma casa de arquitetura portuguesa. Come o pão em que o trigo foi substituído pelo milho de lavra indígena. Acende um cigarro de fumo da terra, põe na cabeça um chapéu de couro chamado quipá, ou de palha, com trançado africano e indígena. Dentro de casa, a esposa vê televisão, e o filho pequeno brinca num vídeo game. E o homem nem imagina que nele deságuam civilizações e saberes. Repara na tarde “que tem qualquer coisa de sinistro como as vozes dos profetas anunciadores de desgraça”, e num vaqueirinho que testa o aparelho celular, buscando sintonia com o mundo.


Texto: https://www.ronaldocorreiadebrito.com.br/site2/2021/07/invencao-do-sertao/

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