As sobras do monturo
Sua casa era uma taperazinha lá no minúsculo da vida. O telhado de flandres coloridos, as paredes de papelão, portas e janelas de pedaços de madeiras de demolição; tudo era resíduos do lixo da luxúria dos grande centros urbanos.
O bairro era apenas um ponto vermelho no mapa que indicava as regiões periculosas da cidade. Não tinha luz, não tinha praça, não tinha nada.
Hora de brincar. Mas cadê o brinquedo? Não tinha brinquedos, então inventava suas próprias brincadeiras.
Havia um monturo que tirava a beleza daquilo que pela lei natural das coisas, deveria ser um lugar onde se mora gente. Mas era lá que encontrava, nas sobras dos meninos ricos, restos de brinquedos, que amarrava num cordão e saía puxando pelo terreiro. Fazia seus próprios carrinhos de lata no quintal de casa, embaixo de uma latada a qual dizia ser sua oficina. Ali, além de consertar sonhos, tornava reais suas fantasias. Prego, martelo, cola, borrachas, pedaços de madeira e imaginação eram suas matérias-primas. As rodas dos carrinhos eram feitas do solado de sandálias de borracha; as molas, de pedaços de chapinhas de aço, a carroceria era de flandre e os bancos, pedacinhos de tábuas cuidadosamente lixados e forrados com retalhos de pano, que apanhava nas portas das costureiras. O volante, o para-choques, as lanternas e os acessórios eram todos reciclados das sobras do monturo. E entre as peripécias de sua meninice, ia procurando a felicidade que poderia estar escondida na fartura dos entulhos de quem não sabia o que é nunca ter tido nada.
Sente vergonha do próprio endereço; mora numa viela da vida, numa comunidade onde os urubus se misturam com almas famintas disputando restos de comida para não morrerem à míngua, e a empresa de água cobrando a taxa de esgoto. Está entre Deus e o Diabo, emparedado; por um lado, ratos de porão; por outro, os guabirus de gabinetes, se esbaldando em suas arrogâncias e brincando de poder. O caos chegou ao apogeu. A lama criou anticorpos, a merda germinou suas larvas nos becos periféricos da miséria. Transformaram-se em monstros, e agora não há exército capaz de combatê-los.
Adolesceu, virou rapaz. A liberdade é uma estrada estranha, lúdica, cheia de dúvidas, ladeada por anjos e demônios que se digladiam para indicar o atalho a ser seguido. No ringue deles, seu destino. Mas os anjos sempre ganham a luta. As orações de sua mãe são fortes; foi benzido por uma rezadeira na hora do parto, e carrega no pescoço um patuá pendurado num rosário de contas para se blindar do preconceito, do descaso, das tentações do mal e não se deixar iludir pelo brilho do pó branco que rege as leis da contravenção.
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