terça-feira, 31 de agosto de 2021

O dia em que o Pajeú foi bater na Amazônia - Parte 1

agosto 31, 2021 Por Alexandre Morais Sem comentários

Por Lindoaldo Campos
Mestrando em História dos Sertões - Membro do CPDoc-Pajeú

   Conhece esse cantador de viola?


   E esse lugar?

Fachada e interior do Teatro Amazonas


   O estilo arquitetônico é renascentista, com detalhes ecléticos. Na área externa, a famosa cúpula chama a atenção pela exuberância, composta por 36 mil peças nas cores da bandeira brasileira, importadas da Alsácia, na França. A maior parte do material usado na construção do teatro foi importada da Europa: as paredes de aço de Glasgow, na Escócia; os 198 lustres e o mármore de Carrara das escadas, estátuas e colunas, são da Itália.

   O salão de espetáculos tem capacidade para 701 pessoas, distribuídas entre a plateia e três pavimentos de camarotes. Impossível não ficar hipnotizado com o teto côncavo, no qual estão quatro telas pintadas em Paris pela tradicional Casa Carpezot. As telas representam música, dança, tragédia e ópera. Esta última, uma homenagem ao compositor brasileiro Carlos Gomes. Ao centro, um majestoso lustre de bronze francês. Também não passam despercebidas as máscaras nas colunas da plateia, que homenageiam compositores e dramaturgos, entre eles, Aristophanes, Molière, Rossini, Mozart e Verdi.

   Pois é: quem é curioso já foi atrás de saber que esse é o Teatro Amazonas, e a página https://cultura.am.gov.br/portal/teatro-amazonas/ ainda diz mais:

   Principal símbolo cultural e arquitetônico do Estado, o Teatro Amazonas, localizado no Largo de São Sebastião, no Centro de Manaus, mantém viva boa parte da história do ciclo da borracha, época áurea da capital amazonense. Inaugurado no dia 31 de dezembro de 1896, o Teatro surpreende e encanta pela imponência.

   Agora feche os olhos (agora mesmo não, só depois de ler mais esse pedaço) e imagine alguém vestido de smoking (isso mesmo: um traje chic de cerimônia), sozinho no palco do Teatro Amazonas apinhado de gente que não foi lá pra outra coisa não: só pra ouvir ele declamar e improvisar poesias.

   Pois esse alguém, esse mesmo do retrato lá do começo, foi Rogaciano Leite. Isso mesmo: o autor de Carne e Alma, que publicou em 1950 (em breve, será publicado o livro Coração Sertanejo, com algumas de suas poesias inéditas), com muitos poemas compostos na Amazônia (que, ao contrário do que muita gente boa pensa, no Brasil não é composta apenas pelo Estado do Amazonas, mas por 772 municípios distribuídos também pelos Estados de Rondônia, Acre, Roraima, Pará, Amapá, Tocantins, Mato Grosso e Maranhão – e Rogaciano apresentou-se em quase todos eles!).

   Isso mesmo: a terceira parte de Carne e Alma é intitulada Lianas Amazônicas, onde está o poema Imortalidade, com o qual simbolicamente fecha o livro e dedica ao Teatro Amazonas em que o poeta diz que vivem o Tempo, o Gênio e a Arte e canta na derradeira estrofe:

  Que templo!… Que Babilônia
   Se levanta na Amazônia
   À luz da Imortalidade!
   – Um prêmio aos dotes humanos…
   – Um desafio a mil anos…
   – Um presente à Eternidade

  Ora, ora, ora: foi justamente aí que o Pajeú foi bater na Amazônia, nesse caso mais precisamente no Teatro Amazonas, onde o poeta pajeuzense apresentou-se pela vez primeira no dia 6 de fevereiro de 1948 (ou seja, com 28 anos de idade, nascido que foi em 1º de julho de 1920, na região de Cacimba Nova, atualmente pertencente ao Município de Itapetim/PE e à época de seu nascimento pertencente ao Município de São José do Egito/PE), com direito a convite destamanho estampado nos jornais, e tem mais: com assinatura e pose de galã (sabia que Rogaciano foi inclusive convidado pra fazer o papel de Castro Alves em um filme sobre o poeta baiano?).
   Quer ver, veja esse convite publicado na primeira página da edição de 13 de outubro de 1949 do jornal Alto Madeira, de Porto Velho, capital do então Território Federal do Guaporé, atual Estado de Rondônia, onde aparece bem no meio, circundado por notícias sobre acontecimentos ligados à recente Segunda Guerra Mundial – daí você tenha noção a importância do convite:

   Mas veja bem (como dizia o saudoso Antônio de Catarina): essa foi a primeira apresentação de Rogaciano Leite no Teatro Amazonas, porque essa história de viola em teatro começa mais pratrásmente (como dizia Odorico Paraguaçu), porque já em 30 de maio de 1943 ele tinha cantado no cineteatro Cinearte, em Maceió, capital de Alagoas, fazendo dupla com o cantador Pedro Lima, conhecido como Ordep (o precursor de Ojuara?).

   Além do mais, Rogaciano também já havia se apresentado no Teatro José de Alencar, em Fortaleza, capital do Ceará, sua segunda terra-mãe onde foi viver no final de 1944 como ele mesmo afirmou muito por causa do cordel Iracema: a virgem dos lábios de mel, escrito por Alfredo Pessoa de Lima em 1927 como adaptação do romance Iracema, de José de Alencar.

   Como diz o pesquisador Alberto Porfírio em seu livro Noites de viola na Casa de Juvenal (p. 7) foi aí que teve início a Era Rogaciano Leite:

   Nos anos 40, 50 e parte dos anos 60 o Ceará viveu a Era de Ouro dos cantadores de viola, que nós optamos por chamar aquele período de a Era Rogaciano Leite, por ter sido o primeiro cantador intelectual que esteve em nossa região. Antes, a cultura cearense era outra. Os cantadores podiam ganhar dinheiro e fama mesmo sendo analfabetos.

   Pois bem: depois de muito ter pelejado (em vários sentidos da palavra), no dia 10 de fevereiro de 1945 os cantadores Rogaciano Leite e João Siqueira de Amorim Leite apresentam-se no palco do Teatro José de Alencar

Fachada e interior do teatro José de Alencar


   Quer ver, veja o cartaz estampado no Jornal O Povo (CE) de 10/02/1945:


   Depois, no dia 10 de abril de 1946, nesse mesmo teatro o poeta organizou o Festival Rogaciano Leite, que contou com a participação especial do afamado cantador Cego Aderaldo (que havia conhecido no ano anterior e de quem se tornou grande amigo), que tomou “parte também em interessantes desafios de improviso com o promotor da festa da arte” (Jornal Unitário (CE), 04/04/1946).

Jornal Unitário (CE) 04/04/1946

   Cansou, foi? Pois canse não que até bater na Amazônia o Pajeú tem mais e muito mais: em Fortaleza, Rogaciano participou ativamente do Violão Clube do Ceará, onde conheceu o compositor, acordeonista e pianista Lauro Maia, que, influenciado também pela poesia e pelo ponteado de sua viola (precisamente chamado de baião de viola), criou um ritmo chamado “balanceio” que influenciou a criação do gênero musical conhecido como baião, de que é Doutor Humberto Teixeira e Rei Luiz Gonzaga.

   Não sou eu quem digo não: é o também saudoso musicólogo José Ramos Tinhorão que diz em sua preciosa Pequena história da música popular (p. 251-252):

O ritmo do baião nordestino, transformado em gênero de música popular urbana a partir de meados da década de 1940, graças ao trabalho de estilização do acordeonista pernambucano Luís Gonzaga e do advogado cearense Humberto Teixeira (“Eu vou mostrar pra vocês / Como se dança o baião / E quem quiser aprender / É favor prestar atenção”, dizia o pioneiro “Baião”, de 1944), tem sua origem num tipo de batida à viola denominada exatamente de baião.

   [Ao iniciar-se a década de 1940], um grande e injustamente pouco conhecido maestro compositor cearense, Lauro Maia (1913-1950) descobriu a riqueza desse manancial de música nordestina e começou a compor num ritmo que chamava de balanceio […]

   Em um artigo intitulado “Baião”, escrito especialmente para a revista Boletim Social da UBC (União Brasileira dos Compositores), de julho a setembro de 1949, Humberto Teixeira, um dos criadores do baião urbano, ia reconhecer implicitamente a importância dessa precedência, ao incluir uma longa enumeração de particularidades nordestinas capazes de explicar o baião: “Estrofes de Rogaciano Leite… O balanceio de Lauro Maia… A viola do cego Aderaldo…”

   Mas eita que a conversa encompridou, ainda estamos no Ceará, demos um revorteio por Exu e faltou até dizer que Rogaciano Leite realizou o Primeiro Congresso de Cantadores nesse mesmo Teatro José de Alencar… Ou será que o primeiro congresso de cantadores foi no Teatro Santa Isabel, em Recife?

   Tem nada não: como o Pajeú ainda vai correr muito pra bater na Amazônia e lá é que vai correr mesmo, fica aqui apalavrado que logo logo a gente pega nessa deixa e paga o verso percorrendo o segundo trecho dessa história arretada que é de todos nós.

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