Meu livro de cabeceira
Ronaldo Correia de Brito |
Mas o que é mesmo um livro de cabeceira? O que lemos antes de dormir? Nesse caso, eu não tenho nenhum, não gosto de livros no quarto e não tenho o hábito de ler à noite. Imagino os livros como entidades vivas, pulsantes, cheias de peripécias. Temo que os personagens saiam das páginas, movimentem-se fora das frases e perturbem meu sono.
Qual seria o livro de cabeceira que, sem frequentar o quarto, sempre esteve ao meu lado? Que livro se confunde comigo a ponto de eu misturar a ficção com a vida? Uma velha História Sagrada, a seleta de textos da Bíblia hebraica, apresentada em dois subtítulos: Antigo Testamento e Novo Testamento. Não sei se a memória confundiu-me, ou se era mesmo ilustrada por Gustave Doré, o ilustrador da Divina Comédia, de Dom Quixote, dos Contos de Perrault, das Aventuras do Barão de Munchausen e das Fábulas de La Fontaine.
Mamãe trouxera para o sertão essas duas preciosidades, guardadas como joias num caixotezinho onde também se espremiam os livros de história, geografia, português e aritmética, seu resumido espólio de professora primária. Naquele mundo ermo, os livros eram relíquias, a ponto de serem inventariados em testamentos, como as terras, os bois e as casas.
Instruído por minha avó, soube da existência de um Cristo, o mesmo homem barbudo e de olhar sereno que ocupava a parede principal da nossa sala, o coração coroado de espinhos. No livro, ele aparecia carregando uma cruz, açoitado, caído ao chão. Tamanha barbaridade contra o pobre inocente merecia castigo. Os algozes não podiam ficar impunes e eu estava ali para exercer a justiça, embora tardia. Orientado por meu pai, impaciente com o couro e a sovela, identificava os homens cruéis, vez por outra errando o culpado e castigando um inocente apóstolo.
– E esse? – perguntava a papai.
– Esse é ruim, pode matar.
Impiedoso, eu molhava o pequeno dedo no cuspe da boca e esfregava a figura do soldado até que não restasse sombra do facínora. E assim, dizimei legiões inteiras, numa precoce leitura. Antecipei as pedagogias modernas, os métodos de aprendizado em que se valoriza o tato, o olfato e o paladar.
A Bíblia tornou-se meu livro de cabeceira, ou o mais visceral de todos os livros de que me aproximei. Alheio aos significados religiosos, aos cânones de judeus, católicos e protestantes, pude deliciar-me em sua vasta literatura, na poesia, na história, no mar de narrativas emendadas umas nas outras, como nas Mil e uma Noites. Decifrando suas páginas, tive ciência da leitura e da escrita, que considero os mais elevados conhecimentos legados ao homem. Reconheci nas paragens bíblicas, os mesmos desertos de sertões nordestinos. Nos pastores de bois, carneiros e cabras, os meus familiares. Nas leis de hospitalidade e nos códigos de honra, as semelhanças sertanejas. Até as histórias se repetiam.
Um tio da primeira leva de povoadores, padre e vaqueiro, amancebou-se com uma índia jucá, e gerou doze filhos. Imaginei-os homens, e suas casas como as doze tribos de Israel. Se foi ou não assim, não tem a menor importância, pois os livros se escrevem misturando realidade e mentira. Preenchemos com literatura “a falta”, afirmaria um psicanalista, querendo dizer com isso que as certezas são fragmentárias, talvez nem existam, e que nossa história pessoal se refaz com muita fabulação.
Ou de maneira bem mais simples, o poeta Pinto do Monteiro recitava: “Eu só comparo esta vida / à curva da letra ‘s’ / tem uma ponta que sobe / tem outra ponta que desce / e a volta que dá no meio / nem todo mundo conhece”.
A Bíblia, um livro possível de ler de várias maneiras, é o lastro de histórias a que podemos recorrer sem credo religioso ou com fé religiosa. Inesgotável, possui as imagens dos sonhos, a épica, a tragédia, a poesia, a sabedoria, a invenção, a genealogia, a retórica e os números. Livro que contém todos os livros. Merece ser lido como o lia na infância, imaginando-o escrito pelo povo sertanejo, pessoas iguais ao pai ateu e ao tio procriador, que povoaram as terras cearenses de gado e de filhos, num novo Gênese
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