sábado, 25 de setembro de 2021

Ronaldo Correia de Brito - O que fala a sombra, o que cala a luz

setembro 25, 2021 Por Alexandre Morais Sem comentários


Naquela idade eu não conseguia imaginar os milhares de pés
Ronaldo Correia de Brito

descalços e os sapatos escuros sob luzes plainando como um céu baixo. As velas acesas ocupam a praça, brilham mais do que os globos opalescentes dos postes. Os fiéis se protegem da parafina quente, escorrendo e queimando suas mãos, improvisam cones de cartolina, que também se incendeiam. “Ave, ave, ave Maria, ave, ave, ave Maria. Viva Nossa Senhora de Fátima Peregrina!” Colados às grades da cadeia, os presos olham a imagem minúscula no andor, as flores dos belos jardins, onde eles nem sonham pisar. “Os três pastorzinhos cercados de luz recebem a visita da mãe de Jesus.” O pai, estatura mediana, se esforça para que o filho assista ao espetáculo luminoso de cima dos seus ombros, escanchado como num cavalo. O menino não curte montarias, prefere a firmeza do chão ou a cabine de um carro em velocidade. Enfia os dedos e se sustém na cabeleira, uma crina escura e lisa, certeza de origem branca da família. Ou indígena? A mãe, pequena e bondosa, se alonga nas pontas dos pés, mas não enxerga além das espáduas à sua frente, homens e mulheres de branco, fitas azuis atravessadas no peito.
  Ao contrário do marido possui fé, se comove com os louvores e vivas, as exortações à piedade e à vida eterna. “Um susto tiveram ao verem a luz, recebem a visita da Mãe de Jesus.” O pai mostra o circo da praça. Olhe, filho! A igreja e o contorno sobrenatural de lâmpadas; as casas dos proprietários de engenho, usadas nos finais de semana para as missas, novenas e festas; o lago cheio de patos, gansos e marrecos; os arcos romanos; os oitizeiros, jatobás e ipês; a cadeia infame, de onde os presos vigiam as pessoas que entram e saem da matriz. “Vivamos sem mancha, cristãos sem labéu, que a Virgem nos guie a todos pro céu.” E numa casa um pouco além e à esquerda da Casa de Deus, sem luzes, apagada no escuro, as paredes infestadas de cupim, presa por leis arquitetônicas à branca alvenaria da matriz, portas e janelas batidas com pregos, a memória dos morféticos e seus pecados. Que sórdida proximidade entre a casa sombria e a luminosa igreja, como se fosse possível celebrar na mesma pedra d’ara a luxúria e a santidade, a concepção virginal e o incesto. Um homem portador da lepra trouxera para a cama de molambos sujos a amante e suas duas filhas, e concebera uma estranha geração. “Ó Virgem Senhora, Mãe da Piedade, livrai-nos das penas da eternidade.” Às claras, para que toda a cidade conhecesse suas fornicações no escuro e as amaldiçoasse, desejando. Não pise a calçada da casa, impunha a mãe. Adentre o pecado, ordenava o pai, os dedos do filho mal segurando a crina oleosa. Grandes e chatos os pés paternos, finos e delicados os maternos. Eles pisam o solo cretáceo da cidade, o que antes fora um oceano há milhões de anos, vez por outra revelado em fósseis que as pessoas arrancam: avencas, peixes, insetos. O que está sob a terra é nada, garante a mãe. Encarar a luz é para os mortais a coisa mais aprazível. Não tema o escuro, rebate o pai. Na sombra se escondem os mistérios. Contemple as luzes acima das cabeças e sonhe escavar embaixo dos pés. Durante séculos, as águas do oceano se tornaram nuvens e camadas de argila se depositaram sobre os seres animais e vegetais. Os poderosos amaram as esposas e as criadas de suas terras, resguardados pelo silêncio. Palavras se depositaram em frases e histórias familiares, como a argila dos fósseis, gerando enredos de ódio, vingança, inveja, incesto, traição e morte: Noite, Bilhar, Força, Magarefe, Mellah, Atlântico, Helicópteros, Perfeição, Sombras, Véu, Amor, Lua. A mesma novela recontada de doze maneiras, mil e uma noites. Um dia, a moça tomou o menino pela mão e levou-o por uma ladeira. Subiram, subiram até imaginarem que chegavam ao céu. Viram as luzes, meninas cantando, vestidos azul claro e rosa, anjos, ciganas, beija-flores, borboletas, pastorinhas, caboclinhos, o céu da infância. Um dia, a moça levou o menino ao porão da cadeia e mostrou-lhe um homem que se enforcara com um arame enferrujado. Roxo, a língua de fora, dobrara os joelhos na cela minúscula e baixa e só dessa maneira alcançara a façanha. O menino ficou muitas noites sem dormir, impressionado com a cena, sem atinar com algum uso futuro para essa memória. “Nem um dia se passa, nem um minuto ou segundo sem um morto. O passado é o que empurra você e eu e todos da mesmíssima maneira, e a noite pertence a você e a mim e a todo mundo, e o que ainda não foi tentado e o que vem depois é pra você pra mim e pra todo mundo”, recitava insistentemente o pai. Escreva, revele o seu amor às sombras. Um dia, quando o menino era grande, e a barba se tornara escassa e grisalha, e as vértebras lombares teimavam em não se dobrar, a mãe, pequena e bondosa perdeu a fala, depois os movimentos, a deglutição, e só respirava através de aparelhos. Por último, inteiramente imobilizada num leito, abria e fechava um único olho. Até que esse olho deixou de se abrir e ela morreu. Quando o pai confessou ao filho que não acreditava no sobrenatural, apenas na matéria, e que ao morrer retornaria ao pó, o homem encurvado assustou-se. O pai recitava um poema sobre a casa suspensa, atrapalhou-se na ordem das estrofes e esqueceu alguns versos. “Minha memória falhou, estou acabado”, disse ao filho. Uma semana depois, morreu.

Sobrou contar essa história.

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