Agnaldo José de Oliveira, 47, reencontra o pai, Zé do Pífano, com quem tinha estado pela última vez quando tinha 1 ano de idade Imagem: Adriano Alves/UOL |
Por Adriano Alves / Portal Uol
A rotina no lote de seu Zé do Pífano, figura conhecida da Ilha do Pontal, em Lagoa Grande (PE), tem sido mais agitada nos últimos dias. Além das atividades de costume, nos cuidados com a roça e a casa, um visitante especial deixou os dias mais intensos. É churrasco no domingo para reunir toda a família, roda de música nos intervalos de trabalho e bastante falatório, daqueles de quem tem muita história para atualizar.
A comunidade ribeirinha, situada no meio do Rio São Francisco, foi a última parada de uma longa viagem que Agnaldo José de Oliveira, 47, fez em cima de uma bicicleta. Ele saiu de Joinville (SC) e pedalou por 2.970 km em uma "cargueira" até chegar ao distrito Vermelho, na cidade pernambucana situada a 662 km de Recife. O objetivo era reencontrar o pai, que não via desde que tinha um ano de idade.
A visita foi uma grande surpresa. Sem ter feito nenhum contato prévio à aventura, Agnaldo só tinha como pista o nome do pai e da comunidade em que ele residiria. Já nas margens do Velho Chico, começou a pedir ajuda. "Me leva pra encontrar meu pai, José Inácio de Oliveira", dizia e ficava sem respostas dos mais desconfiados. Até que um dos moradores abordados retrucou: "Sabe com quem você está falando? Pois, eu sou seu irmão". Era João José da Conceição Oliveira, 27, filho mais novo do patriarca procurado, que trabalha nas barquinhas que fazem travessia para a ilha. O momento foi de muitos abraços e lágrimas.
Saudade grande demais
"Eu vou conhecer meu pai", gritava Agnaldo durante o trajeto que, depois do barco até o outro lado da margem, foi concluído na garupa da moto do irmão. A pressa foi tanta que fez a bicicleta ficar na barca mesmo, "porque a saudade já era grande demais". O pai, que estava na roça, sentiu o coração acelerar ao voltar para casa. "Eu tinha certeza que não ia morrer sem ver meu filho", conta emocionado o agricultor de 72 anos.
Zé do Pífano lembra que quis cuidar do filho, "a intenção era casar com a mãe dele, mas não deu certo", mas a família levou o menino embora. Ele, que era viúvo e tinha sentido a morte de seus dois primeiros filhos ainda crianças, agora sentia falta de mais um que lhe foi tirado. "Quando a gente tem um filho, a gente não esquece", sentencia seu Zé.
O tempo foi caro para os dois. Agnaldo José lembra que o avô chegou a prometer realizar um encontro, mas faleceu sem conseguir cumprir, em 1994. A próxima notícia do pai chegou apenas em 2012, quando um de seus tios esteve na região para resolver um "problema de terras". Um vídeo que recebeu do pai relatando o sonho de reencontrá-lo foi o combustível que reacendeu em Agnaldo o desejo de voltar à sua terra natal.
Em 2013, aposentado de seu emprego na construção civil após um acidente de trabalho, ele aproveitou o desconto dado à sua situação para comprar um carro novo na expectativa de fazer a viagem. Entretanto, a até então sua esposa não concordou: "E ela começou a colocar obstáculos". O plano foi adiado por longos anos e só após a separação ele retomou a ideia de cruzar o país em busca de suas raízes.
Foi na igreja que frequenta que disse ter "recebido um recado de Deus" para fazer a viagem de bicicleta. Dessa vez, não titubeou. A primeira intenção era fazer o trajeto em cima de uma "monareta", que adquiriu como quem realiza um antigo sonho de infância, mas um acidente com ela em setembro deste ano fez o plano ser adiado. "Era pra eu ter trauma de bicicleta, mas nunca desisti", conta. A solução foi pegar a estrada em cima da cargueiro cinza, velha companheira.
Estrada longa da vida
32 dias. Esse foi o tempo em que Agnaldo fez da estrada sua morada. Mesmo sem muita experiência em ciclismo e com 70% de incapacidade do lado direito do tronco — sequela do acidente de trabalho —, cruzou três regiões do país com uma carga de 160 kg, subindo e descendo ladeiras, arriscando-se nos acostamentos das rodovias e acampando em postos de gasolina.
Os problemas começaram a aparecer ainda no meio do trajeto. Além do cansaço físico, a bicicleta simples não aguentou o tranco — e ele chegou a ficar 24h parado, esperando resolver um problema no pneu dianteiro. Ao seguir viagem, passou por uma estrada de paralelepípedos e, tentando se equilibrar nas duas rodas, não viu o celular cair. Já se passavam 200 km quando notou, pensou em desistir, mas fez o retorno. Encontrou o aparelho estraçalhado e ficou sem comunicação o resto da viagem.
Em certo trecho, fortes chuvas atrapalharam a jornada. Agnaldo até recebeu propostas de caronas, mas recusou. Para esperar o temporal passar, dormiu dentro de um caminhão baú que transportava colchões.
Em uma bolsa simples, ele carrega até hoje folhas assinadas por pessoas que conheceu no caminho. São registros afetivos do trajeto, que incluem rascunhos de mapas que iam indicando como seguir em direção a Pernambuco e assinaturas de quem lhe estendeu a mão. Agora, as páginas foram plastificadas — foi a forma que ele encontrou de eternizar os encontros da estrada.
Correndo atrás do prejuízo
"Yes, my brother", é arranhando um inglês que Agnaldo recebe a reportagem do TAB no quintal da casa de seu pai. De chapéu de couro na cabeça e roupa usada na lida do campo, o ciclista parece já estar bem familiarizado com os costumes da região que acabou de conhecer. "Todo dia eu olho o Rio São Francisco e converso com ele", conta.
"Painho, maninho, mainha", até o modo de falar sertanejo já está na ponta da língua do filho que a casa torna. Aos poucos tem se inserido na rotina da família, seja correndo com o irmão mais novo, ao qual incentivou a prática de exercícios, ou levando café para o pai na roça, em sua "cabrita" — apelido regional que a bicicleta ganhou.
No celular, mostra as novas lembranças, fotos com os nove irmãos que não conhecia e com os sobrinhos. "24 horas com ele é só alegria. Depois que ele chegou, é só aventura, ele e o véio", caçoa o irmão aos risos. Nesses dias juntos, o pai tem rodado a comunidade apresentando o filho aos conhecidos. "Todo mundo fala que não precisa de DNA", diz o pai, orgulhoso.
As semelhanças são claras, ambos calçam o mesmo número, caminham parecidos e gostam de jogar conversa fora. "Até o exame do dedão fomos fazer juntos", brinca Agnaldo, fazendo referência ao temido exame de toque de próstata. Da terra do pai, já lhe foram prometidos 50 pés de manga e uma casa. A ideia é se mudar para a região para aproveitar mais a convivência e, quem sabe, trazer os dois filhos para conhecer o avô.
Durante a entrevista, o pai chega com uma caixinha de som que toca uma música de pífano, fazendo jus ao seu apelido. É uma gravação de quando ele ainda tinha o instrumento tradicional da cultura popular nordestina. Na sombra dos pés de mangueira, a família se reúne para colocar tantas histórias a limpo e escutar o patriarca e o filho com seus talentos musicais. Seu Zé puxa um cavaquinho e Agnaldo um clarinete. "Entra na minha casa, entra na minha vida", diz um trecho da canção que eles entoam.
O próximo passo é a troca dos nomes de filiação nos documentos. Agnaldo José foi registrado como filho dos avós maternos, pois a avó não admitia um neto registrado como filho de "mãe solteira". Eles já buscaram orientação jurídica e em breve o desejo será realizado.
Agnaldo pretende voltar ao Sul nos próximos dias. Quer repetir o feito em cima da cargueira mas, para isso, precisa de equipamentos e quer conseguir um carro de apoio para voltar sem carga e em segurança, além do uniforme adequado para usar nas pistas. "Têm pessoas que olham para si próprio e falam 'eu não consigo'", diz Agnaldo, que é completado pelo pai com "é porque não tem fé".
Copiado de: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2022/11/25/apos-46-anos-filho-pedala-3-mil-km-para-encontrar-pai-no-sertao-nordestino.htm
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