segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

A lição do sono do rio

fevereiro 27, 2023 Por Alexsandro Acioly Sem comentários





 

A lição do sono do rio

    Contam os canoeiros do São Francisco que o rio, na hora grande da meia-noite, dorme dois minutos. É a hora em que a vida se assossega e o mundo se recolhe: as cachoeiras interrompem a queda, a correnteza cessa e Paulo Afonso silencia. 

    Os ribeirinhos aprendem que não se deve acordar o rio durante o sono

    Nos dois minutos de sono do rio, os peixes se aquietam, as cobras perdem a peçonha e a mãe d´água se levanta para pentear os cabelos nas canoas. Os afogados saem do fundo das águas em direção às estrelas. O sono do rio não deve ser interrompido, sob pena de endoidecer quem despertou as águas. 

    Matuto a respeito do que os ribeirinhos ensinam sobre o descanso do rio e concluo que vez por outra é mesmo necessário adormecer no tempo e sossegar como as águas.

    O ritmo da nossa sociedade – marcado pelo fascínio das máquinas, o ruído dos motores, a precisão dos relógios, a velocidade das informações simultâneas e a procura feérica da felicidade – acelera a vida e desencanta o tempo. Por isso é preciso, vez por outra, adormecer feito o rio ao abandono das horas, se aluar em águas paradas e abandonar os desatinos da felicidade.

    O sono do São Francisco, o desapego dos peixes e o silêncio das cachoeiras me fazem crer que a expectativa da felicidade, da forma como a sociedade de consumo lida com ela, é das coisas mais brutais que existem.

      Parece paradoxal, mas a expectativa da felicidade é uma fonte poderosa de angústias e desassossegos. 

   Que os caboclos do Brasil me iluminem para que eu respeite o sono do rio, o repouso dos peixes e o voo dos afogados. Que o país imaginado, e em mim recolhido, me ensine a viver na síncopa, no drible, na dobra do tambor, na oração dos romeiros, na dança lenta de Oxalufã, nas delicadezas do Reizado, nas rodas de cirandas, nas oferendas do Divino, na suavidade dos sons bonitos e na imponência calada das gameleiras.

     Nosso mundo, de tão virtual, anda meio desvirtuado – e eu quero cada vez mais ter o tempo de adormecer o rio, aquietar os peixes, sossegar as cachoeiras e me encantar com a Uiara a envaidecer canoas.


Luiz Antonio Simas, Pedrinhas miudinhas: 2012

Ilustração: Betânia Zacarias

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