quarta-feira, 8 de março de 2023

Alexandre Morais - 100 linhas de Sertão

março 08, 2023 Por Alexandre Morais Sem comentários

 


Versos: Alexandre Morais

Arte: Edgley Brito

Cancão acuando cobra
E a bicha engolindo um sapo
E o bicho inflamando o papo
Pra ver se o tamanho dobra
Urubu comendo a sobra
De um cassaco esgoelado
Que o guará deixou de lado
Quando se viu satisfeito
Eis o retrato perfeito
Do sertão que eu fui criado

Um boi ruminando deita
Por cima do pasto frio
Chega a baba faz pavio
Quando o bicho se deleita
Um anu no lombo aceita
Nem liga pro beliscão
Que longe da precisão
Quem bem passa, mal não trata
Quando o verde veste a mata
Meu sertão é mais sertão

É difícil quem retrate
Uma noite assim tranquila
Um grilo longe sibila
E um cachorro longe late
Isso é ouro em quilate
Que Deus nos deu de presente
Fez o ouro reluzente
E o sertão que não reluz
Mas é o que mais seduz
E o que mais enrica a gente

Aprendi c’um certo João
Paraibano e poeta
Que o relampo é o profeta
Que anuncia o trovão
Que a semente racha o chão
Para a planta germinar
E sabiá ao cantar
Avisa que o ano presta
O trovão prepara a festa
Pra Asa Branca voltar
 
Quando chega a invernada
O nevoeiro aparece
E o relampo risca um “S”
Na tela da madrugada
Mas nessa seca danada
O “S” é o do sofrimento
Com mais o “T” do tormento
Judiando os animais
Se a seca demorar mais
Eu vendo até meu jumento
 
Um boi que saiu da canga
Inda com marca no lombo
Entre tropicão e tombo
Busca refúgio na manga
Com a mutuca se zanga
Lembra a vara que o furou
Depois lambe onde ficou
A ferida do ferrão
E o caçote lambe o chão
Da cacimba que secou
 
Nessa paisagem da gente
O suor é companheiro
Do trabalhador roceiro
Quando o sol grita: presente
Mas o sertanejo é crente
Ora para Deus agir
Só basta a reza subir
Pra água se derramar
Só Deus faz o céu chorar
Pro sertanejo sorrir
 
O ano tem dozes meses
Uns de chuva outros de estio
Quando chove canta o rio
Mas isto são poucas vezes
Sofrem os homens, as reses
Mas chuva que molha o chão
Espanta logo o carão
E acorda os sabiás
O sertão só dorme em paz
Quando ouve a voz do trovão
 
Minha casa é bem modesta
Mas cabe minha família
Faço da mata a mobília
E de jardim a floresta
Terreiro é salão de festa
A cancela é o portão
E existir uma mansão
Melhor que esta eu duvido
Além do lar que eu resido
Minha casa é o sertão
 
Quem pensa que é só tristeza
Falta de chuva e quentura
Nunca provou da fartura
Que é feita a nossa mesa
Pela própria natureza
Quem é daqui sabe dar
Um jeito de transformar
A boa vontade em pão
Quem fala mal do sertão
Não conhece o meu lugar
 
Eu enxergo a poesia
No sol que se deita rubro
Num fim de tarde de outubro
Ao som da Ave Maria
Miro ele todo dia
Chega o olho lacrimeja
Como quem sonha ou deseja
Fazer o que Deus tem feito
Deus tatuou no meu peito
A paisagem sertaneja
 
Deus fala à minha pessoa
No ranger d’uma braúna
No cantar d’uma craúna
No gralhar da cracatoa
No sapo, que na lagoa
Depois da noite parida
Corteja a lua nascida
Refletida na represa
Quem protege a natureza
Defende a base da vida

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