Nesse mês de agosto de 2024, completam-se 50 anos da morte de Lupicínio Rodrigues. Ele faleceu em 27 de agosto de 1974, na sua cidade natal, Porto Alegre. O gaúcho nasceu em 16 de setembro de 1914 e sua obra é um dos patrimônios da cultura brasileira. Seu repertório já foi cantado por diversos cantores e até hoje ganha novas interpretações.
Apesar de ser um dos principais compositores românticos do nosso país, Lupi não sabia tocar violão ou qualquer outro instrumento: ele usava a caixa de fósforos para fazer as batidas de suas composições. Seu repertório é marcado por uma melancolia, o amor é sempre uma tortura, tanto que a rima que mais se repete em seu cancioneiro é "amor" com "dor", como apontado no livro “Melodia e sintonia em Lupicínio Rodrigues: O feminino, o masculino e suas relações” de autoria de Maria Izilda S. de Matos e Fernando A. Faria, ambos historiadores. Muitos podem pensar que isso é simplesmente uma comodidade para criar rimas mas, na verdade, isso reflete como Lupicínio enxergava o amor, como veremos em algumas de suas composições.
O repertório do compositor gaúcho quase sempre é ambientado em um cenário bem específico, a noite urbana e a vida boêmia (e do boêmio), nas mesas de bares, com luz baixa, muita bebida, cigarro e trocas de olhares. Uma realidade que hoje parece distante, mas é muito significativa da nossa história. O próprio Lupi nos diz em uma crônica no jornal Última Hora de Porto Alegre:
“Quase todo o mundo caracteriza o boêmio como um indivíduo sem caráter, que não trabalha, que vive a cometer desajustes, ou mais comumente, um vagabundo. Ser boêmio não é nada disso. O boêmio, em princípio, é um notívago , depois um poeta, um amoroso, um admirador das serestas e é realmente um companheiro da lua… são pessoas que nasceram para admirar o belo: adoram a noite, a lua, as estrelas e tudo o mais que lhes representa prazer e alegria sem que isso os desvie do trabalho e do lar“ (Retirado do livro "Melodia e sintonia")
Uma das composições de Lupi que ouvimos sobre esse ambiente noturno é "Quem há de dizer", em parceria com Alcides Gonçalves:
O bar é o ambiente onde o amor acontece, começa e termina, onde se vai para amar e sofrer pelo amor perdido. Como cantado em "Rosário de Esperança":
Às vezes a pessoa por trás do balcão é a causadora de tal sofrimento, como em "Dona do bar":
No repertório de Lupi, a mulher é retratada de maneira traiçoeira, sempre malvada e responsável pelo sofrimento do homem. Em suas letras não existe condescendência, só existe o ódio:
Em "Castigo", mais uma parceria com Alcides Gonçalves, Lupi canta que a mulher maltrata enquanto é jovem e bonita e depois que envelhece procura quem desprezou:
“Nas composições de Lupi, o comportamento feminino aparece dotado de diferentes significados, geralmente negativos e desqualificadores. Assim, a mulher é um ser essencialmente perigoso, duvidoso, instável, volúvel e falso, motivo pelo qual o desejo de vingança paira sobre os sentimentos e define a base de certas relações” (Melodia e sintonia em Lupicínio Rodrigues: O feminino, o masculino e suas relações)
No cancioneiro de Lupi, o amor é aquilo que melhor representa a existência humana ao mesmo tempo em que é aquilo que mais maltrata o indivíduo:
Lupicínio Rodrigues não tinha vergonha de cantar sobre as dores do amor, aliás, nunca escondeu que cantava sobre suas próprias experiências, que seu repertório era autobiográfico. E a primeira pessoa ajuda na identificação do ouvinte, que canta como se fossem suas próprias dores e desilusões. É interessante notar que as canções de Lupi ao mesmo tempo que retratam a mulher com um olhar misógino, também desconstroem o ser homem, que abre o coração e canta suas dores sem vergonha de represálias, porque apesar do modelo de masculinidade propagado, era e ainda é por meio da arte onde os homens podem expor seus sentimentos. As canções do nosso poeta sofredor são uma fonte para entender o cotidiano de um Brasil distante, mas tão próximo de nós, repleto de passionalidade. Seus dramas e soluções são importantes porque as emoções são, como escreveu o historiador Rob Boddice, o centro da existência humana. Hoje muitos falam em sofrência, mas na época de Lupicínio não usavam essa palavra: a expressão comumente usada era dor de cotovelo, que vem justamente da imagem de uma pessoa com os cotovelos na mesa de um bar, chorando por uma mágoa amorosa. Quem nunca derramou uma lágrima por amor?
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