Do IMMuB
Por Túlio Vilaça
Qual será a mais perfeita canção brasileira já composta? Já vi diversas listas, rankings e votações, com resultados diversos e em geral meio disparatados, já que não há meio de haver um critério objetivo para isso. Já vi saírem vencedoras “Carinhoso”, de Pixinguinha e Braguinha, que o próprio Pixinguinha não considerava tão boa por ser um choro sem a tradicional terceira parte; “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, que é sim a canção brasileira com mais gravações; e em 2009, a revista Rolling Stone Brasil fez sua lista, cravando “Construção”, do Chico Buarque, em primeiro lugar. Pois eu vou discordar de todas estas classificações. A mais perfeita canção brasileira já feita chama-se “Beatriz”, de Chico, mas sobre a melodia de Edu Lobo. E vou defender este ponto sob os critérios mais objetivos possíveis de análise musical. O que evidentemente é muito pouco, porque não é em termos objetivos que uma obra de arte alcança o público, e mesmo a maior perfeição técnica pode soar vazia. Mas, ainda assim, é por meio do domínio técnico que o artista atua: a emoção de quem assiste ou ouve é fruto de uma organização de sentidos com suas regras próprias - inclusive para serem eventualmente quebradas.
Beatriz é parte da trilha sonora do balé “O grande circo místico”, de Edu e Chico, criado para o Balé Guaira, sob direção de Naum Alves de Souza, a partir do poema homônimo de Jorge de Lima. O álbum da trilha foi lançado em 1983, com vários intérpretes, e a interpretação soberba de Milton Nascimento para Beatriz, acompanhado pelo piano de Cristóvão Bastos e as cordas arranjadas por Chiquinho de Morais. Edu, ao falar sobre o a composição de Beatriz e do musical, conta de sua admiração sobre a letra de Chico e um pouco do processo de composição:
"Chico ia completando as outras letras e deixando essa, que chamávamos de 'valsona', para depois. Parecia que não conseguia fazê-la. Um dia, sugeri a ele que fizesse uma letra sobre a reação do público diante do artista de circo, sempre em dúvida se era desse jeito, se era daquele outro, se era bom, se era mau, como costuma acontecer com certas plateias. Na mesma hora ele me disse que ia para casa cuidar da 'valsona'."
No dia seguinte, conta Edu, Chico chegou com a letra pronta, sem necessidade de ajustes. E Edu sempre conta também de sua admiração ao notar, dias depois, do preciosismo de Chico ao colocar a palavra céu sempre na nota mais aguda da canção, enquanto a palavra chão corresponde à nota mais grave - esta cantada apenas uma vez, na parte B. Mas este é apenas um dos detalhes das relações entre letra, melodia e harmonia de Beatriz, assim como o ponto de partida do poema de Jorge de Lima é apenas uma de suas intertextualidades.
A segunda não deixa de ser também bastante evidente: a substituição do nome da equilibrista que no poema é a fundadora da dinastia de circo Knieps, de Agnes para Beatriz, além de facilitar a rima, estende a referência à musa de Dante Alighieri em sua viagem do Inferno ao Céu na “Divina Comédia” - por sinal, referendada na última estrofe da letra. A passagem da equilibrista para esta condição na verdade transpõe para ela características que no poema original são de suas tetranetas gêmeas, Marie e Helene. A visão mística das duas virgens incorruptíveis que se apresentavam nuas em contorcionismos espantosos no poema adquire uma sublimidade típica do romantismo na canção.
Luiz Tatit, no seu método analítico da canção popular, estabelece duas coordenadas em um plano cartesiano (na verdade não exatamente, pois seu método é muito mais complexo que isto. Mas estas duas características fundamentais se prestam a serem cruzadas): em uma, a altura da nota, que adquire maior tensão quanto mais vai ao agudo e menos ao se dirigir à região grave; a outra, a velocidade rítmica da entoação das notas, sendo mais rápida sugerindo movimento, ação, e mais lenta, com notas mais estendidas, levando à sentimentalização (de resto, características partilhadas em comum com toda palavra cantada, vide a dicotomia recitativo/ária na ópera).
Mas uma canção não é um ente bidimensional, e portanto há mais um eixo neste plano cartesiano além do x e do y. O eixo z é o da harmonia. A harmonia tonal, compartilhada por todo o Ocidente e base da canção popular, é baseada também em uma dicotomia, repouso/instabilidade. O acorde da tonalidade sugere imobilidade, enquanto o da dominante indica a ação - e conduz à tônica. Acordes de repouso e tensão se sucedem contando uma história paralela à letra e indicando muitas vezes o real significado das notas da melodia, que, conforme a harmonia que soe sob si, podem significar problema ou solução, alegria ou tristeza, meio ou fim.
Beatriz é uma canção composta sob a égide pós-bossa-nova, privilegiando a harmonia. Mas mais que isso, a escola composicional de Edu Lobo é filha dileta da de Tom Jobim, este influenciado por Villa-Lobos, e todos por suas vezes influenciados pela corrente impressionista da música de concerto, em especial Debussy, em que harmonias semoventes assumem o protagonismo sobre melodias frequentemente estacionárias. Paulo da Costa e Silva estende esplendidamente esta análise neste artigo.
Edu não chega, como Tom, a estabelecer aqui uma melodia estacionária. Ao contrário, a de Beatriz é finamente desenhada. A estrutura da canção é um clássico AABA: as estrofes A se organizam num desenho que ascende aos poucos, da tônica em direção à dominante - do chão ao céu, da estabilidade ao desequilíbrio, como a moça no arame. Todas terminam com a frase “E se eu pudesse entrar na sua vida”, encerrada no acorde da dominante, mas sem conduzir à tônica. A estrofe termina em suspenso, com o desejo não cumprido, a pergunta não respondida. A harmonia determina e reforça a significação da letra.
A parte mais aguda da canção, em que Chico encaixou a palavra “Céu”, acontece justamente logo após a metade, quando a tensão da interpretação se radicaliza num paroxismo de indagações sobre a atriz. Tomemos as três estrofes A para compará-las, a primeira:
Olha / Será que ela é moça / Será que ela é triste
Será que é o contrário / Será que é pintura / O rosto da atriz
Se ela dança no sétimo céu / Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel / E se eu pudesse entrar na sua vida
Olha / Será que é de louça? Será que é de éter
Será que é loucura / Será que é cenário / A casa da atriz
Se ela mora num arranha-céu / E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel / E se eu pudesse entrar na sua vida
Olha / Será que é uma estrela / Será que é mentira
Será que é comédia / Será que é divina / A vida da atriz
Se ela um dia despencar do céu / E se os pagantes exigirem bis
E se o arcanjo passar o chapéu / E se eu pudesse entrar na sua vida
Os seis primeiros versos, que aqui agrupei em duas linhas, fazem a ascensão aventando crescentemente a constituição etérea do rosto, da casa, da vida (ops, não é a vida. Falaremos disso adiante) que culmina, nas três estrofes A, na palavra “Atriz” - esta afirmativa, no acorde da tônica e na nota fundamental, só que na região aguda, como se as luzes do picadeiro se acendessem todas sobre ela. Os dois versos seguintes constituem o devaneio que busca adivinhar como é a vida da atriz fora do palco, mas sempre imaginando uma vida condizente com a fantasia do palco, enquanto a melodia anda em círculos na região aguda; e no penúltimo verso, acontece uma possibilidade de volta à realidade: e se não é assim? E se na sua vida particular ela é outra, sem relação com a que brilha sob as luzes? Acompanhando a perspectiva de uma desilusão, a melodia desce de volta à terra, preparando para o desejo final nunca atendido.
Mas ainda temos a parte B, a terceira estrofe. E nesta, a estrutura formal estrita e organizada das demais vai pelos ares.
Sim, me leva pra sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz, ai
Diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz
Na parte B de Beatriz, não é mais Chico nem Jorge de Lima que falam, é o próprio Dante que pede para ser conduzido como na Divina Comédia. E nela, melodia e harmonia são viradas pelo avesso: além da já mencionada palavra “Chão” na nota mais grave, que ocorre somente aqui, ao contrário do “Céu” nas partes A que se repete, ocorrem modulações em sequência que levam a canção para um território totalmente diferente. É como se, num roteiro diferente do dantesco, depois de visitar o céu, houvesse uma visita às possibilidades do inferno, para depois poder voltar a vislumbrar o céu na última estrofe.
A harmonia desta estrofe parte da dominante que encerra a parte B, indicando um desequilíbrio. Porém, ao invés de voltar à segurança da tonalidade, como ocorreria em caso de repetição da parte A, o que acontece é um mergulho no desconhecido: da dominante, o próximo acorde sobe meio tom, passando ao sexto grau menor da escala original. Este acorde é o novo chão - e é sobre ele que esta palavra será entoada -, mas por pouco tempo: imediatamente depois a harmonia passa a escorregar por acordes dominantes de diversos tipos, em sequência, muitas vezes em distâncias de semitom. O chão se move sem cessar, e, como a letra acabou de dizer, não é possível andar com os pés no chão.
E então o verso “Para sempre é sempre por um triz” surge no quarto grau desta nova tonalidade, instável numa tonalidade instável, e em seguida a melodia, caprichosamente, sobe mais meio tom, como quem dá mais um passo na direção do abismo - e a harmonia acompanha este passo em um acorde suspenso que conduz ainda a uma outra tonalidade. Os dois últimos versos irão caminhar como que à deriva, sem rumo certo, perdidos da tonalidade inicial e como que em direção a um beco sem saída, consumado no fim da frase “Diz se é perigoso a gente ser feliz”, que termina sobre um acorde de dominante menor da tonalidade original, mas que aqui tem função totalmente diferente. Mas que, tornado maior em seguida, abre uma porta a esta altura totalmente inesperada para a volta ao tom, à parte A, à segurança. Beatriz conduziu o eu lírico da canção por um labirinto - perdão, esta é Ariadne - por perigos e desastres, devolvendo-o, incólume, ao fim de seu número.
Mas ainda não acabou. Porque, em 2023, Chico decidiu-se por uma mudança na letra. Na volta à parte A, no verso A vida da atriz, a palavra “Vida” foi substituída por “Sina”. Tecnicamente, a mudança faz todo o sentido: primeiro, por passar a proporcionar uma rima interna com a palavra “Divina”, que encerra o verso anterior; e segundo, porque Chico termina todas as estrofes da parte A com a palavra “Vida”, e portanto, sua repetição ainda uma vez no interior da mesma estrofe a enfraquece, banalizando o termo ao antecipá-lo, em vez de guardá-lo para o verso que foi preparado ao longo de toda a estrofe.
Mas há ainda a debater a inevitável mudança de significado acarretada pela troca de uma simples palavra. Vejamos: a cada uma das estrofes/parte A, o mesmo lugar da palavra vida/sina é ocupado por um dos aspectos da atriz/equilibrista que o eu lírico deseja conhecer melhor: o rosto, a casa, e finalmente, a vida/sina. Não há dúvida de que, no crescendo realizado por estas palavras, vida é um final consistente para este arco de significações. Só que, como notamos, a própria estrofe tem seu arco particular, que também termina na palavra “Vida”, só que em outro ponto.
Então, não se trata apenas de uma repetição de palavra, mas de significado mesmo: logo após dizer que quer conhecer a vida da atriz, o eu lírico diz isso novamente, e logo no encerramento da canção. Esta reiteração poderia ser interessante se programada, mas ela ocorre acidentalmente, e com isso uma enfraquece, ainda que minimamente, a outra. Já a inclusão da palavra “Sina” muda a direção do encerramento de um dos arcos, e assim eles deixam de colidir.
Finalmente, se a palavra “Vida” parece bem ampla, “Sina” consegue ser ainda um pouco mais, pois aponta para o futuro. Há um redirecionamento no questionamento: agora, o eu lírico quer entrar na vida da atriz para desvendar seu destino. Trata-se de uma ampliação de significado. Além disso, diante dos penúltimos versos das partes A anteriores (“E se ela só decora o seu papel / E se ela chora num quarto de hotel”), a possibilidade de uma sina não tão feliz para a atriz surge como uma possibilidade real. A pergunta então se abre para o trágico, de uma forma que a palavra vida não permitia. Se a vida da atriz é inacessível a seu público e a seu apaixonado, sua sina é inacessível também para si mesma.
Edu Lobo brincou, depois da mudança, que Beatriz acabou levando 30 anos para ser finalmente terminada. Na minha modesta opinião, já era antes disso a mais perfeita canção da música brasileira, por todas as suas relações internas que se multiplicam e potencializam umas às outras em significados. Mas o tempo mostrou que mesmo a perfeição pode ser aperfeiçoada. Difícil dizer se isto vale para Beatriz, a musa, mas certamente valeu para Beatriz, a canção.
0 comments:
Postar um comentário